3.O Estado.
(P. 35) Todas as sociedades,
mesmo as mais primitivas, são de alguma forma politicamente organizada. Ou
seja, em toda sociedade há mecanismos estabelecidos, através dos quais as
decisões públicas são formuladas e efetivadas. Toda coletividade tem alguma
espécie de “governo”, embora a estrutura e o funcionamento desses governos
variem muito. Uma coletividade sem organização política não seria humana.
Só a constatação de
que há sempre um governo não basta para pensarmos adequadamente sobre a
questão. (P. 36) Talvez o caminho mais fácil seja utilizarmos
um pouco de imaginação histórica.
Suponhamos uma
sociedade primitiva dos primórdios da História. Chamaremos essa sociedade de
Ugh-Ugh [1]. Nos primeiros tempos de Ugh-Ugh, os homens
não se distinguiam muito dos animais, pois sua tecnologia era precária.
Contudo, a inteligência, a fala e o uso das mãos já distinguiam os Ugh-Ugh dos
outros grupos. (...)
Podemos presumir que
os primeiros líderes dos Ugh-Ugh eram os mais fortes, que podiam impor sua
vontade sobre os mais fracos. Apesar disso, mesmo os mais fortes não podem
enfrentar todos os outros membros em conjunto, o que aconteceu foi que os mais
fortes trocavam seus privilégios por alguma serventia a comunidade: liderando o
combate contra inimigos, tomando a frente das caçadas, etc.
(P. 37) Mas com o
desenvolvimento tecnológico, ser apenas o mais forte já não bastava. Por
exemplo, um ugh-ughiano de inteligência e habilidade inventou a primeira arma
(uma lança ou um machado de pedra), é evidente que a força física já é contrabalanceada.
A arma além de introduzir a noção espacial torna o braço mais longo, fato
incompreensível para os animais selvagens e ameaçador para o próprio homem. O
controle da tecnologia passou a desempenhar papel fundamental nas decisões
coletivas. Quem tinha machado ou lança tinha o poder.
Outros avanços
tecnológicos nas áreas de produção de alimentos e agasalhos também introduziram
novidades em Ugh-Ugh. Se no começo eles dependiam da coleta das frutas
selvagens ou da caça, agora eles aprenderam a agricultura e o pastoreio.
(P. 38) O início do cultivo
intencional e organizado de plantas comestíveis e do pastoreio de animais são
avanços importantíssimos. A coletividade se torna mais forte, mais apta a
resistir a crises naturais, ao crescimento populacional, etc. O poder não vem
só das armas e pode estar muito mais concentrado naqueles que detêm a
tecnologia do cultivo e do pastoreio.
(P. 39) Com o tempo, os
avanços tecnológicos vão gerar o que se costuma chamar de divisão social do
trabalho. Enquanto no início os ugh-ughianos se limitavam a caçar e coletar
provavelmente o trabalho era coletivo e a propriedade era de todos. Com o
cultivo e o pastoreio a divisão iniciou-se, sendo acelerada pelo
desenvolvimento tecnológico.
É necessário que se
colha o trigo, que se selecione, que se faça farinha, que faça o pão. Todas
essas atividades, gradualmente são distribuídas por diversos setores, bem como
o pastoreio.
(P. 40) Esse processo de
divisão social do trabalho introduz diversos conflitos de interesse na
coletividade antes tão simples. Assim, para o agricultor o campo é lugar de
semear; para o criador de gado, um lugar para transformar em pastagem. Quem
conseguiu, pela força, um pedaço de terra poderá explorar o trabalho alheio de
quem não conseguiu. Quem produzir trigo poderá trocar por carne e vice-versa e
o valor relativo dos bens, agora transformados em mercadorias, será certamente
arbitrado em processo que envolverá conflitos. Assim o interesse de cada um
passa a não ser, como antes, o interesse de todos. Acrescente a isso a
possibilidade de acumulação de excedentes, isto é, de bens em quantidade
superior a indispensável para o consumo de seu produtor, o que irá marcar o
perfil socioeconômico de Ugh-Ugh, tais como a acumulação individual de riqueza
e o desenvolvimento do comércio.
(P. 41) Os conflitos de
interesse causam tensão. A tensão só pode ser resolvida através da solução do
conflito. Os conflitos de interesse só se resolvem no confronto e com a vitória
do que dispõe de instrumentos mais eficazes.
Vamos imaginar que
neste conflito os pastores e os agricultores entrassem em guerra civil que
terminasse com a vitória dos pastores. Imediatamente, os pastores se organizariam
para manter sua hegemonia e seus líderes seriam os líderes de toda a
coletividade. Com o tempo, os costumes e os valores tenderiam a enobrecer
atividades relacionadas com o pastoreio. Agricultores não poderiam tornarem-se
nobres, sendo a eles proibido cavalgar por exemplo. A religião poderia se
desenvolver em torno de mitos adequados a visão de mundo dos pastores.
(P. 42) Com a vitória, os
pastores de Ugh-Ugh, resolveram o conflito básico de sua sociedade e, pelo
menos por enquanto tem controle das decisões públicas. Com o passar do tempo,
esta situação pode não permanecer. Então, a tendência do vitorioso é criar todo
tipo de mecanismo para se estabilizar no poder. E desta maneira diferenciar os
governantes dos governados por meio da institucionalização.
Não é complicado
entender o que é institucionalização. Vamos supor que depois da vitória, um dos
pastores se haja tornado chefe e, durante a sua vida, tenha gradualmente
assumido uma série de responsabilidades e tarefas importantes para seu povo.
Com a morte deste, ocorre a indicação de outro líder para assumir o legado
político do falecido.
(P. 43) Ou seja, existe um
papel social e político a ser cumprido independente da pessoa que o desempenha.
A organização só se manterá se houver mais do que o chefe: se houver a chefia.
No momento em que a chefia passa a existir ela se institucionaliza. Com a
institucionalização surgem os processos de sucessão e inúmeras instituições
paralelas ou corolárias.
A esse conjunto de
instituições dá se o nome de Estado. Que nasce em dois passos: a) o
estabelecimento da diferença entre governantes e governados; b) a
institucionalização dessa diferença. Onde quer que existam essas condições
existirá um Estado, quer ele tenha presidente, rei ou chefe, leis escritas ou
não, três poderes ou não e assim por diante.
As instituições são
compreendidas em um arcabouço chamado ordem jurídica, ou seja, um conjunto de
normas de aplicabilidade geral, que regem o funcionamento da coletividade. Em
Ugh-Ugh, mesmo muito tempo depois do estabelecimento de um Estado complexo, é
bem possível que as normas jurídicas, o que hoje chamamos leis, fossem não
escritas e misturadas com normas religiosas, morais e outras. (P.
44) Isto ainda existe hoje em dia, mas o comum é que a ordem jurídica
seja mais ou menos distinta da religião e da moral.
Resumindo, com o
surgimento de atividades e o fim da coletividade, houve diversos conflitos de
interesses entre grupos. Esses conflitos são resolvidos com o domínio de um
grupo sobre o outro estabelecendo a diferenciação entre governantes e
governados. Essa diferenciação é institucionalizada criando-se a ordem
jurídica. Assim forma-se o Estado. Que existe em toda sociedade política e
juridicamente organizada, muitas vezes confundindo-se com a sociedade.
4.Estado e Nação.
(P. 49) A palavra “Estado”
tem utilização confusa, especialmente para os brasileiros, por causa da forma
do Estado brasileiro, que é a federação, dividida entre a União (governo
federal) e os Estados. Então quando se fala em Estado o brasileiro pensa em São
Paulo, Minas Gerais, Bahia, etc. O termo Estado usado neste sentido deveria ser
mudado para “Estado- membro”, porque todos eles fazem parte do Estado
brasileiro.
Na linguagem
corrente, é comum que se usem como sinônimos as palavras “Estado”, “Nação”,
“País” etc.
(P. 50) É preciso que esses
termos sejam distintos, para que não caiamos numa confusão. Em muitas situações
os termos são sinônimos em outras não. Sendo fundamental distinguir
principalmente as palavras Estado e Nação.
Hoje a maioria dos
países é classificado como um “Estado-Nacional”. Mas podemos dizer que talvez a
maioria dos países são na verdade Estados não-nacionais. Pois, há Estados com
várias nações e há nações com vários Estados. O Estado já sabemos o que é. A
nação pode encaixar-se completa e exclusivamente dentro de um Estado, mas
também pode não se encaixar.
A nação quer dizer
muitas vezes uma raça comum, uma língua comum, uma história comum, tradições,
valores e hábitos comuns. Que os identifique com um grupo.
Existem grupos que
moram distantes e se sentem membros de uma nação como cearenses e
gaúchos. (P. 51) E outros que vivem muito perto e não se
sintam de uma mesma nação como os bascos e os castelhanos. Os bascos que vivem
na fronteira entre Espanha e França não se sentem pertencentes a nenhum dos
dois Estados.
Para os brasileiros
isso é difícil de entender. Pois, o Brasil é um caso raríssimo onde Estado
coincide com nação. Então para um brasileiro desavisado russo é russo, quando
na verdade russo é apenas uma das várias nações que compõe a Rússia. Outro
exemplo é o Canadá um Estado binacional.
Há também nações
politicamente divididas como a Alemanha [2], dividida
entre ocidental e oriental.
(P. 52) Muitas nações europeias
só se constituíram em Estado recentemente, até bastante depois do Brasil. Como
a Itália e a Alemanha.
Estados como a
Iugoslávia e a Tchecoslováquia [3] são na verdade a
junção de várias nações muito individualizadas, como sérvios, croatas,
montenegrinos, tchecos, eslovacos, macedônios, eslovenos e assim por diante.
Os diversos grupos
independentes de índios brasileiros, embora em número muito reduzido para
classificar o Brasil como uma Estado multinacional, são nações submetidas ao
poder centralizador do Estado brasileiro.
(P. 53) Nem a nação nem o
Estado necessitam de um território fixo e delimitado. A nação cigana se
espalhou por todo o mundo sem perder sua identidade. Da mesma forma indivíduos
dispersos por muitos países podem considerem-se cidadãos de um mesmo Estado.
Como aconteceu na II Guerra quando a resistência francesa se fez em outros
países.
Essas coisas são
muito importantes de se ter na mente quando tentamos compreender os problemas
dos índios brasileiros, dos palestinos, dos bascos, etc. São também noções
indispensáveis para se compreender a história dos povos, pois do contrário
grande parte dela perderá o sentido.
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Os palestinos são um exemplo de nação sem Estado. |
Assim, por exemplo, a
Guerra dos cem anos é tida sempre como uma guerra entre a Inglaterra e a França
no séc. XIV. Mas como se nem a França, nem a Inglaterra existiam como as
conhecemos hoje, ou seja, não existiam os Estados francês nem inglês. (P.
54) Não sendo assim uma guerra entre Estados, mas crises internas
dentro da classe dominante da época, que vivia um momento de declínio do
feudalismo e de início da afirmação do poder do rei (primórdios do surgimento
do Estado nacional). Se ignorarmos estes fatos, nossa visão dos acontecimentos
se perde em tolices.
[1] Esse é um exercício de “imaginação histórica” e não pode ser
compreendido de maneira literal. Essa simplificação é um resumo de processos
que se desenrolaram durante milênios.
[2] Não se esqueça de que o livro foi escrito em 1981.
[3] Estes dois Estados não existem mais justamente por isso.
Bibliografia:
RIBEIRO; João Ubaldo:
“Política: quem manda, por que manda, como manda” - 1981.pág 35-54