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Este ótimo texto escrito por Teresa Malatian, originalmente publicado pela Unesp Aberta , faz um resumo conciso e pontual da maneira como o modo de se escrever, pensar e produzir história se alterou durante os anos, em especial nos últimos dois séculos. |
Boa Leitura!
RESUMO:
O
percurso metodológico da constituição da História como conhecimento científico
desde o século XIX é abordado neste texto, com destaque para a Historiografia
francesa em suas diversas interpretações. A História cultural completa a
trajetória deste balanço voltado para a formação do professor que irá trabalhar
a disciplina no Ensino Fundamental.
A presença da
disciplina História no currículo do Ensino Fundamental leva a diversos questionamentos
acerca do trabalho do professor, tendo como ponto de partida o próprio conceito
que nomeia os conteúdos chamados históricos. Logo de início uma distinção se impõe,
levando à primeira designação de história como experiência dos homens no tempo,
vivendo em sociedade, relacionando-se entre si e com a natureza, criando modos
de viver. A segunda conceituação refere-se a um campo de conhecimento, a
História que resulta do trabalho de pesquisa e interpretação desenvolvido pelo
historiador.
Diversas
maneiras de conceber a História e o seu ensino sucederam-se e conviveram desde
a Antiguidade, quando Heródoto, célebre viajante grego do século V a.C., lançou
as bases desse conhecimento ao procurar separar mitos de fatos “reais” nas
narrativas sobre o passado, embora admitisse que a atuação dos homens estivesse
sujeita à interferência dos deuses e do destino.
No século XIX,
acompanhando o desenvolvimento da busca da cientificidade em diversos ramos do
conhecimento, a História conheceu uma grande transformação resultante da
intenção de seus escritores de elevá-la ao estatuto de ciência, a exemplo do
que ocorria com o conhecimento da natureza, apoiado em métodos críticos
voltados para a obtenção do conhecimento objetivo, livre do pensamento mítico,
religioso ou filosófico. O positivismo, Conteúdos e Didática de história postulado
por Augusto Comte, estabeleceu um paradigma da busca da verdade calcado na convicção
da existência de leis naturais e afirmou a possibilidade de sua aplicação ao
estudo da sociedade. Assim como à nascente Sociologia, cabia à História
procurar resgatar a verdade objetiva, imparcial e neutra sobre o passado,
utilizando para isso as provas documentais deixadas pelos nossos antecessores.
A base
documental da pesquisa histórica firmou-se desde então com a abordagem metodológica
que considerava os documentos escritos – sobretudo os oficiais – registros confiáveis
da experiência humana. Uma vez aprovadas em matéria de confiabilidade, as chamadas
fontes históricas eram estudadas pelo historiador no sentido do resgate de
informações sobre o passado “como realmente aconteceu”. A célebre frase
atribuída a Leopold von Ranke, expoente da historiografia científica do século
XIX e modelo para gerações de historiadores, expressa a confiança que
depositavam na prova documental e no seu valor para a cientificidade do
conhecimento histórico. A contrapartida consistiria na atitude objetiva do historiador,
livre de paixões políticas, religiosas ou de outra natureza que pudessem
interferir em sua busca da verdade, distorcendo os fatos recuperados nos
documentos. O fato histórico latente nos documentos seria, então, revelado pelo
historiador que atuaria como mero transmissor da verdade.
Completava essa
concepção da História a convergência dos esforços do historiador para construir
sua narrativa pela reunião de eventos únicos, que jamais se repetem, alinhados cronologicamente
e protagonizados por indivíduos de destaque: heróis e “grandes homens”. A frase
que definiria este tipo de História poderia ser: o indivíduo em ação no tempo que
passa rapidamente. Da narrativa histórica, essencialmente voltada para a vida
política, excluíam-se as pessoas comuns, os fatos da vida cotidiana e os
acontecimentos que não tivessem alcançado repercussão significativa.
Na França,
constituiu-se um paradigma de ampla aceitação e grande longevidade, a chamada
Escola Metódica que codificou esses postulados de cientificidade e os
apresentou como regras de método de trabalho para o historiador. Seu principal
defensor foi Gabriel Monod (1844-1912), que escreveu em seu Manifesto a frase
célebre: “Nosso século é o século da história”. Nela, exprimia as preocupações
e o direcionamento da historiografia do século XIX, que resultaram na proposta
de um procedimento metodológico claramente voltado para a inclusão da
disciplina no campo científico marcado pelo positivismo. Seu paradigma situava-se
do outro lado do Reno, na historiografia alemã acima mencionada e que
representava para ele o maior avanço até então alcançado por este ramo do
conhecimento.
A inserção da
História no campo da ciência vinha sendo almejada por historiadores imbuídos do
cientificismo. Esse processo estava amparado pela participação do Estado na construção
de instituições, como bibliotecas, arquivos, museus, favoráveis ao
desenvolvimento do ofício do historiador que ora se profissionalizava e recebia
patrocínio para publicação de grandes coleções. Ampliava-se também, no contexto
nacionalista e de expansão colonial dominado pela burguesia, um público
consumidor de História. Isto foi particularmente válido para a Alemanha, onde
já se instituíra uma formação específica e especializada do profissional da
História e os métodos de investigação estavam adiantados na heurística e publicação
de coleções de fontes documentais.
Para bem
alcançar a objetividade histórica Monod, em seu manifesto intitulado Do progresso dos estudos históricos na
França desde o século XVI, propunha uma historiografia que deveria
colocar-se acima dos partidos políticos, publicando estudos históricos sem preconceitos,
conciliadores e estritamente norteados pelo desejo de conhecimento científico.
Assim, o
manifesto anunciava uma nova postura, a pretensão de fundar uma revista que
veiculasse uma história objetiva, científica e formar uma escola no sentido de
firmar um paradigma para os historiadores e para os que aspiravam a este
estatuto. A adesão ao método era fundamental para essa individuação no campo
historiográfico da época. Um método baseado na concepção da História como
ciência positiva, conhecimento fundamentado em documentos a serem criticamente
analisados para que, do crivo da crítica, surgisse a verdade sob a forma de
fato histórico. A história metódica permaneceu ocupada com o relato do único,
singular, particular, baseado na crítica das fontes e na erudição amparada pelo
método crítico das fontes.
Décadas depois,
os princípios dessa metodologia seriam sistematizados por dois jovens
historiadores, Charles Victor Langlois e Charles Seignobos que publicaram em
1898, a Introdução aos estudos históricos. Nesse tratado de método, a proposta
de Monod foi codificada e tornada operatória em um manual que formou gerações
de estudantes e profissionais de história.
Em Karl Marx
também se encontra a grande valorização do conhecimento histórico no século
XIX. De seu modo de pensar historicamente, motivado pela necessidade de compreender
o mundo para transformá-lo, surgiu sua concepção da História como estudo fundamentado
filosoficamente na concepção dialética e materialista do processo histórico, aser
compreendido a partir das relações sociais de produção da vida em sociedade.
Além da concepção teórica da História, veio deste pensador a base para o
desenvolvimento de uma metodologia que privilegia as classes sociais na análise
do acontecer histórico, visto como decorrente de leis do desenvolvimento
histórico conduzido pelo jogo das contradições em direção ao progresso.
A História
aparece nesta concepção como ciência de síntese de todas as demais ciências e
coloca, em seu núcleo principal de investigação empírica, as relações sociais
de produção. O método derivado da teoria conduz a análise histórica para a
análise da sociedade em termos dos modos de produção, com o objetivo de
alcançar uma interpretação globalizante, integrando na explicação os aspectos
econômico, social, político, cultural e ideológico, compreendidos em suas
relações recíprocas e organizado segundo as relações sociais de produção. A
interface da História delineava-se assim para um campo amplo, orientado por perspectiva
sociológica e econômica, que rejeita a História historizante de fundo
positivista. Temporalidade ampla do modo de produção e sujeitos históricos
coletivos marcaram a leitura da história nesta perspectiva voltada também para
o estabelecimento da verdade objetiva, sem prejuízo de uma sociologia do
conhecimento na tentativa de explicar o caráter ideológico presente na
construção da História.
Transformações
importantes nas práticas dos historiadores surgiram no século XX e atingiram o
conhecimento histórico para reconhecer o sentido relativo e subjetivo da
verdade. Em sua dimensão mais profunda, as práticas historiográficas passaram a
admitir o papel não meramente transmissor do historiador, para afirmar que a
História “[...] é a aventura espiritual na qual a personalidade do historiador
se engaja por inteiro” (MARROU, 1975, p.197). Convencidos da impossibilidade de
meramente atualizar o passado, os historiadores, sobretudo da França, passaram
a afirmar que a história vivida só se torna conhecimento na medida em que o
relato produzido pelo pesquisador estabelece uma relação entre o passado vivido
pelos homens e o historiador que o visita. Sem este procedimento, o passado nos
seria inacessível enquanto objeto de conhecimento e nada mais se configuraria
do que o próprio presente do historiador: algo confuso, multiforme,
ininteligível (RICOEUR, 2010).
Visto desta
perspectiva, o conhecimento histórico adquire a dimensão de uma relação do
historiador com o passado, o qual não mais seria o revelador de um fato
histórico latente contido nos documentos, antes assumiria a iniciativa ao
colocar, no início de sua pesquisa, a questão norteadora da pesquisa. Sem abrir
mão da ancoragem documental, que confere ao discurso histórico confiabilidade,
o trabalho do historiador passou a admitir, sobretudo com Marc Bloch e os que o
acompanharam na renovação do conhecimento histórico na França, a importância da
explicação histórica na operação historiográfica.
Em que consiste
essa explicação? Na constituição de cadeias de fenômenos semelhantes e no
estabelecimento de relações entre eles. Dá primazia à análise em lugar da
síntese e nela reúne aspectos da experiência humana que permitem pensar a
história global, ou seja, política, economia, relações sociais, cultura,
instituições etc.
No bojo dessa
renovação houve um redimensionamento do conceito de evento, o qual deixou de
ser considerado apenas como ação de indivíduos na curta duração para
constituir-se em fato social que comporta, como mostrou Fernand Braudel em suas
obras, a percepção de múltiplas temporalidades na compreensão das diversas
modalidades da experiência humana. Algumas ocorrem em ritmo rápido, no tempo breve
do evento; outras persistem mais e dizem respeito a relações mais duradouras
entre os homens, e destes com a natureza, como a conjuntura e a estrutura,
concebidas como territórios da temporalidade média e de longa duração, nas
quais as mudanças são menos frequentes. Elas se caracterizam pelas permanências
daquilo que persiste ao longo do tempo. A História abriu-se, então, para um
tempo social no qual novas categorias, tomadas de empréstimo à linguística,
antropologia, economia, demografia, sociologia e geografia, passaram a ser
utilizadas permitindo a compreensão, na dimensão temporal, dos conceitos de
estrutura, tendência, ciclo, crescimento, crise etc.
Ao rejeitar a
concepção do indivíduo como “último átomo da investigação histórica” e do
evento como “último átomo da mudança social”, a historiografia francesa
deslocou-se da preferência pela história política para a abertura à história
econômica, social e cultural, e passou a ocupar-se de grupos e classes sociais,
enfim, de sujeitos coletivos. Assim procedendo, incorporava também alguns dos
procedimentos teórico-metodológicos datados do século XIX.
Incorporando
novos objetos, novos problemas e novos documentos, a História passou a
ocupar-se também do cotidiano, das mentalidades, das crenças e dos comportamentos,
da cultura popular etc.
Outra vertente
significativa da Historiografia contemporânea é a que tomou como referências a
crítica ao materialismo histórico e os aportes dos estudos de cultura. Desde os
anos 1950, desenvolveram-se na Inglaterra questionamentos da história operária
que iriam motivar E. P. Thompson (1997) e E. J. Hobsbawm (1987) a propor novas
análises centradas na história do homem comum e libertadas da leitura
sequencial, factual, causal e teleológica, centrada no conceito de progresso da
humanidade.
História
e cultura
A proliferação
dos estudos culturais sob várias denominações expandiu-se na Historiografia nas
últimas décadas e alcançou as diretrizes curriculares para o ensino nas escolas
de nível fundamental. A atração por esse campo multidisciplinar tem ocorrido
por remanejamento de velhos interesses, atualização da História social e
incorporação de estudos de identidade. Metodologicamente, historiadores
culturais têm reforçado alianças com os campos da crítica literária e retórica
pós-moderna. No entanto, o procedimento de manutenção de um compromisso com a
realidade extratextual distingue o historiador do crítico literário.
A diretriz
principal da História cultural consiste em uma nova postura política e
intelectual decorrente de um novo interesse pelas representações e
interpretações, bem como da recusa dos modelos analíticos globalizantes. Seus
conceitos e métodos foram construídos no diálogo entre a História e a
Antropologia, como se pode verificar em Roger Chartier (1990), que se ocupa das
representações do mundo social como componentes da realidade social e busca
explicar a “lógica específica” dos “bens culturais”, em cujo centro se encontra
a apropriação dos objetos culturais. Nesta perspectiva, cabe ao historiador
identificar como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade
social é construída, pensada, e gera uma dada leitura do mundo. Implica na
construção de esquemas intelectuais que conferem sentido ao presente e são
determinados pelos interesses de grupos que os elaboram.
Trata-se de
percepções do social que, não sendo neutras, produzem estratégicas e práticas (sociais,
escolares, políticas) as quais tendem a impor uma autoridade, a legitimar
projetos, a exercer um papel justificador de indivíduos, escolhas, atitudes. O
campo das representações nunca pode ser desvinculado das concorrências e
competições, ou seja, do poder e da dominação. Existem batalhas de
representações travadas por grupos no afã de impor concepções de mundo,
valores, domínio e que comportam alto grau de violência simbólica.
Chartier (1990)
utiliza o conceito de representação coletiva para conciliar as imagens mentais
claras com os esquemas interiorizados, ou seja, as categorias incorporadas, que
as estruturam. Trata-se de um direcionamento para o estudo do social e não do
psicológico, voltado para representações do mundo social, as quais, à revelia
dos atores sociais, traduzem suas posições e interesses, e ao mesmo tempo
descrevem a sociedade.
O procedimento
comporta a identificação de símbolos: os signos, atos, objetos, figuras intelectuais
ou representações coletivas que permitem aos grupos elaborar uma organização conceptual
do mundo social ou natural. O conceito de representação significa o
relacionamento entre um objeto e sua imagem construída, com amplas
possibilidades de variabilidade e pluralidade tanto em imagens, como em textos.
Elas constituem elementos decisivos para a construção de identidades grupais,
na medida em que distinguem o grupo e o mantêm como tal.
A História
cultural ocupa-se também das práticas sociais entendidas como comportamentos transmitidos
historicamente e que configuram modos de viver. Procura a interdependência entre
os modos de agir e pensar, bem como suas relações com as estruturas de poder. Propõe
que se pense as individualidades nas suas variações históricas, inscrevendo-as
em um processo de longo prazo, em suma na longa duração em lugar do tempo curto
do evento. Uma história desacelerada e refratária a datações estreitas abre
perspectivas para a percepção de permanências e continuidades.
A História
ensinada hoje, no Ensino Fundamental, apresenta vínculos importantes com as
diversas vertentes interpretativas que configuram o campo historiográfico e que
ora inovam ora conservam as práticas do historiador.
A difusão de
teorias de ensino-aprendizagem que consideram o aluno participante ativo do
processo de construção de conhecimento, bem como a defesa de uma História
crítica, resultaram na percepção da importância da História ensinada para que o
aluno se perceba como sujeito ativo não apenas do conhecimento, mas da própria
história vivida.
A presença da
História no saber escolar, a partir de tais perspectivas, coloca a necessidade de
serem repensados conteúdos e métodos adequados aos alunos das séries iniciais
da escolarização.
*Por: Teresa Malatian Departamento de História da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais - UNESP / Franca (Reprodução integral)
*Reprodução integral do ótimo texto originalmente publicado pela
UNESP ABERTA.