Estudos tentam entendem o que faz um rico ser rico
Carlos Haag
Em um de seus contos de juventude, The rich boy, o
escritor americano F. Scott Fitzgerald escreveu que “os ricos são diferentes de
mim e de você”. “São mesmo”, alfinetou numa carta seu amigo, o também
romancista Ernest Hemingway, “eles têm mais dinheiro”. Esses dois “predicados”
dão a eles um terceiro privilégio: os ricos “se escondem” e são muito pouco
pesquisados...
Há uma extensa literatura sobre a pobreza no Brasil, mas
existem poucos estudos sobre os ricos. Estudá-los é relevante porque eles detêm
poder e suas ações afetam uma grande massa de pessoas, inclusive os pobres; por
outro lado, eles possuem a maior parte da riqueza do país e uma das formas de
melhorar as condições de vida da população mais pobre é a redistribuição das
riquezas da sociedade na sociedade”, explica Marcelo Medeiros, coordenador de
pesquisa aplicada do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) no
Internacional Poverty Centre da ONU e autor da tese de doutorado O que faz os
Ricos ricos: um estudo sobre os fatores que determinam a pobreza. A pesquisa
será publicada em outubro (2005) pela editora UNB. Para o autor, se conhecermos
o grupo que deve receber recursos, pouco sabemos dos que vão cedê-los.
Não faltam, no entanto, estatísticas para mostrar que, como diz
Medeiros, a pobreza de muitos está diretamente conectada à riqueza de poucos.
Basta ler o estudo Atlas da exclusão social no Brasil: os ricos,
feito por professores da USP, Unicamp e PUC-SP, que revela que a renda dos 10%
mais ricos corresponde a 45% do PIB nacional. A situação piora se incluirmos
nesse cálculo dados sobre o patrimônio: nesse caso o porcentual chega a 75,4%
da riqueza total brasileira. Em outros parâmetros, 5 mil famílias (ou seja,
0,001% do total) detém 3% da renda nacional. Entre os anos 1980 e 1990, o
Brasil registrou um aumento no número de ricos, embora tenha havido uma redução
no crescimento do país: de 1,8% da população eles saltaram para 2,4%. Mas quem
são os ricos? Em seu estudo, Medeiros criou uma linha de riqueza, definida a
partir da pobreza e da desigualdade, que estaria em torno de R$3,5 mil per
capita. Uma família típica de quatro pessoas teria uma renda total de R$14
mil. Leve-se em consideração que esses não são os “muito ricos”, mas compõem o
grupo de 1% da população que detém 11% da renda. Detalhe terrível: o pobre
gasta 32,79 da sua renda com comida e o rico apenas 10,26% o que mostra que ele
paga mais tributos proporcionalmente do que os ricos que vivem com conforto.
Milagre- Os
dados assuntam qualquer corrente econômica. “A péssima distribuição de renda
parece ser uma praga perpétua no Brasil. Ela resistiu a surtos econômicos de
crescimento do ‘milagre brasileiro’ e aos efeitos positivos da queda drástica
da inflação desde o Plano Real”, observou o ex-ministro e professor da USP
Delfim Netto em artigo recente. Os juros altos castigam ainda mais os pobres:
Toda vez que a taxa se eleva em 1% a renda do trabalhador cai 1,9%, enquanto os
ricos perdem 0,72% de seus rendimentos. “A política de juros altos tem um
efeito devastador sobre a distribuição de renda, mas é menos visível do que os
provocados pela inflação”, analisa Márcio Pochmann, economista da Unicamp. Além
disso, ela avisa que o pagamento de juros elevados da dívida pública compromete
os investimentos na economia real, gerando desemprego e afetando ainda mais os
pobres. O dinheiro, então, mais uma vez migra para os ricos. “É importante
lembrar que há uma clara interseção entre as elites econômicas e as elites de
poder: dessa forma, além de orientar os destinos da economia, eles também
influenciam as decisões de Estado e a formação da opinião pública”, nota
Medeiros.
Delfim, foi preciso: essa é uma “praga” perene. “Mudanças de
regime político, fases de euforia e depressão da economia, modernização de
valores e costumes, nada disso foi capaz de alterar expressivamente essa
segmentação entre uma massa grande de pobres e uma pequena, porém rica, elite”,
avalia Medeiros. Em seu trabalho, o pesquisador do Ipea, baseado em dados do
IBGE, põe abaixo antigas e arraigadas explicações para a desigualdade social.
Algumas dentre elas, inclusive, são aventadas como hipóteses para se acabar com
a pobreza. Como o controle da população, a ideia de que só são pobres porque
têm mais filhos do que os ricos. “Apenas 3% das famílias brasileiras têm mais
do que três filhos com menos de 10 anos. As taxas de fecundidade estão em
patamares baixos. Dizer que o controle da população é solução da pobreza é
jogar para os menos privilegiados a culpa por sua situação”.
Medeiros observou em suas simulações o que ocorreria se os ricos
tivessem mais filhos e os pobres menos. “O fato se uma família ser metade da
família do outro não explica o fato de os ricos terem uma renda 27 vezes maior
do que a dos pobres”, alerta. “Não existe nenhuma razão para crer que o tamanho
das famílias é o que faz as pessoas serem ricas. A riqueza não é resultado de
um maior controle do número de filhos dos ricos. Justificar a desigualdade
nesses termos é dizer que pobre é irresponsável, rico é disciplinado e isso
explica toda a diferença entre eles”. Outro mito recorrente, segundo Medeiros,
seria o ideal de crescimento econômico puro (ou seja, aquele que aumenta o
nível do produto da economia sem mudar sua distribuição) como panaceia para a
desigualdade. “Mesmo que o país fosse capaz de manter, por duas décadas taxas
estáveis de crescimento de 4% ao ano, isto é, crescer em mais do que o dobro da
velocidade das duas últimas décadas e duplicando o PIB atual, a pobreza ainda
incidiria sobre 12% da população”. Assim, para o pesquisador, o crescimento
pode ser bom, mas é insuficiente para reduzir a desigualdade entre ricos e
pobres.
O que os diferencia então? “A forma desigual como os trabalhadores
de cada grupo são remunerados. A média da remuneração por hora trabalhada dos
ricos é 9,2 vezes maior que a dos não-ricos. Isso indica que, mesmo que os
não-ricos tivessem a mesma composição e organização familiar dos ricos, as
desigualdades entre os estratos persistiriam”, diz Medeiros. “Também carece de
fundamento a ideia de que muito da riqueza pode ser explicada por jornadas de
trabalho mais extensas. Mesmo que os trabalhadores não-ricos aumentassem suas
jornadas de trabalho para o nível médio dos ricos, pouquíssimos se tornariam
ricos”. Outro mito a ser derrubado é o da educação como forma de abrir as
oportunidades de ser rico para todos por meio do trabalho. “As simulações
mostram que um nível elevado de educação dos trabalhadores, um alto
investimento e de longo prazo, é a condição necessária, mas não suficiente para
que uma família seja rica”, diz. “Mesmo supondo um aumento significativo do
nível educacional dos trabalhadores, não é de esperar grande mobilidade ascendente
para o estrato rico.
Relações- Em
sua tese, Medeiros ressalta a importância de se levar em consideração fatores
externos como a inserção em redes de relações sociais, a pose de capital
cultural e a propriedade de recursos produtivos, todos elementos que elevam a
remuneração de seu trabalho. Medeiros lembra que, para pobres ou ricos, a renda
provém mesmo do trabalho, embora “trabalho” signifique coisas diversas para os
dois grupos. Dessa forma, afirma, os ricos têm características que os fazem ser
ricos por terem nascidos ricos e, com boa chance, continuarem ricos. Eles são
mesmo diferentes. “Ainda assim, não devemos ser pessimistas em relação ao
futuro, mas enfrentar o fato de que a erradicação da pobreza e a redução da
desigualdade só ocorrerão com a redistribuição da renda, ou seja, da
transferência de recursos dos mais ricos aos mais pobres”, afirma o
pesquisador. “Muitas das pessoas que vão ler esta reportagem fazem parte da
elite dos 1%, mesmo que não gostem de admitir a ideia. Quase todos os leitores
vão fazer parte dos 10% mais ricos. Isso não é julgamento de valor, mas um fato
da nossa distribuição de renda”, avalia.
“Medeiros argumenta com razão que para entender a pobreza é
indispensável analisar a ponta da pirâmide, os ricos, uma vez que a pobreza no
país é resultado da péssima distribuição de renda”, observa Celi Scalon, do
Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), em comentário
ao trabalho do pesquisador. “Rejeitando alternativas mais ‘fáceis’ e
‘digestivas’, como controle populacional e crescimento econômico, o autor
escolhe um caminho árduo e pouco simpático à elite, que detém não só o poder
econômico como o político e o simbólico. “Rafael Guerreiro Osório, do Centro
Internacional de Pobreza do Programa da ONU para o Desenvolvimento, concorda.
“As soluções viáveis para a redução da pobreza terão que envolver alguma forma
de deixar os ricos menos ricos”, nota em análise às hipóteses de Medeiros.
Flavio Comim, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e da
Universidade de Cambridge, outro analista da tese do pesquisador, ressalta a ideia
de que o “envolvimento dos ricos é engrenagem fundamental para a harmonização
de interesses sociais e provisão de um Estado de bem-estar social mínimo.
Dependemos tanto do Estado quanto do ‘sentimento moral’ dos ricos para
progredir na direção de uma sociedade menos injusta e moralmente mais
aceitável”.
Ameaça- No
mesmo conto em que mostra como os ricos são diversos, Scott Fitzgerald revela o
reverso da fortuna: “Eles acreditam, no fundo de seus corações, que são
melhores do que os outros, justamente porque as compensações e refúgios da vida
foram coisas que nós descobrimos por nós mesmos. Mesmo quando chegam a penetrar
em nosso mundo, continuam a pensar que são melhores que o resto do mundo”.
Assim, a tarefa proposta por Medeiros não é fácil de ser alcançada. “As elites
acreditam que os problemas sociais são as maiores ameaças à democracia
brasileira”, observou Elisa Reis em sua pesquisa Percepções da elite
sobre pobreza e desigualdade. Fruto de várias entrevistas, o survey de
Elisa, feito para o Iuperj, revelou que a educação é apontada pelos ricos como
o caminho mais adequado para dotar os desprivilegiados de recursos. Com melhor
educação, os pobres teriam chances de competir por um lugar melhor na estrutura
social, sem que houvesse necessidade de custos para os não-pobres. O trabalho
de Medeiros já mostrou a falácia dessa ideia.
Seja como for, para os ricos, a culpa da miséria é do Estado.
Segundo o estudo de Elisa, as elites “acreditam que as coisas poderiam mudar se
houvesse vontade política e se o Estado cumprisse o seu papel”. A pesquisadora
ressalta que os resultados poderiam fazer crer numa consciência social elevada
dos ricos, já que os problemas sociais estariam no topo de suas preocupações. O
que poderia, segundo ela, levar a uma avaliação errônea de que nossa elite
desejaria repetir aqui o que os ricos dos países desenvolvidos fizeram na forma
de solução coletivas públicas (reforma agrária, educacional etc.) para a
resolução da pobreza na Europa e a consolidação do Welfare State.
“No entanto, isso não procede. Falta uma noção de responsabilidade social entre
os ricos. Aparentemente, eles não se veem como parte de um todo e nem percebem
o Estado como parte da sociedade, pois, ao responsabilizá-lo pela pobreza, as
elites se eximem da responsabilidade coletiva”, avalia. “É quase um consenso
entre os ricos que o Estado é e deve ser o responsável pelo combate à pobreza.
Essa percepção é tão difundida nesses grupos quanto a ideia de que a liberação
do comércio, a privatização das empresas estatais e o encolhimento do Estado
são transformações extremamente positivas”, conclui o estudo de Elisa.
Os pobres brasileiros, por sua vez, reforçam a “boa vida” dos
ricos e a consideram justa, como nota o estudo de Celi Scalon sobre o “jeitinho
brasileiro” de conviver com as desigualdades de renda. “Os brasileiros têm um
grande apreço pelas credenciais e atribuem um peso importante às qualificações
profissionais como recurso para a aquisição de status”, analisa a professora. “Nesse
sentido, altos salários são justificáveis quando vinculados ao mérito
individual (esforço, qualificação, inteligência, educação) e, portanto, a
desigualdade de renda é moralmente ou eticamente legitimada”, observa Celi. Na
mesma pesquisa, a autora descobriu que os brasileiros justificam as
desigualdades de renda quando as reconhecem como necessárias para a
prosperidade do país. “Esse tipo de legitimação das desigualdades faz lembrar a
lógica que imperou no Brasil no período da ditadura militar, quando se afirmava
que era necessário primeiro fazer ‘o bolo’ crescer para depois dividi-lo. Tudo
indica que essa crença permanece ainda nos dias atuais”. Os mitos descritos por
Medeiros ainda sobrevivem.
Declínio–
Nem todos, porém concordam com o pesquisador. Cláudio Dedeca, economista do
Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho (Cesit) e professor
livre-docente do instituto de Economia da Unicamp, em comentário ao estudo dos
ricos, argumenta que nos últimos 25 anos a economia nacional vem sofrendo um
declínio de produto per capita gerado pelos trabalhadores
brasileiros economicamente ativos, ou seja, há uma queda na produtividade
média. “Portanto, distribuir renda nas condições atuais da economia brasileira
permitirá no máximo, reduzir o grau de pobreza e diminuir a defasagem em termos
de bem-estar da população brasileira, mas não permitirá o seu ingresso no
padrão de bem-estar que a população de menor renda de outros países alcançou,
como, por exemplo, na Coréia, Cingapura, Taiwan ou Tailândia”, afirma. Para
Dedecca, é preciso reconhecer que o Brasil de hoje é um país pobre e que se
houve um tempo em que podíamos falar em distribuição de renda essa discussão
ficou nos anos 1970, quando a economia brasileira vivia um momento de
crescimento econômico e de elevação da produtividade. “Mesmo considerando a
relevância das políticas distributivas por ele mencionadas, elas tenderiam à
inviabilidade em um contexto de queda da produtividade média social como do
Brasil de hoje”, nota o economista.
Mas há ressalvas, mesmo para quem também preconiza a importância
do “aumento do bolo”. Para Luiz Gonzaga Belluzo, titular do Departamento de
Economia da Unicamp e vencedor do Prêmio Juca Pato deste ano, é preciso tomar
cuidado com o tipo de crescimento por que vai se optar. “Em toda a sua
história, o Brasil cresceu com aumento de desigualdade social. Isso não é
tolerável hoje. Se o país vai crescer, há a exigência de que esse padrão não se
repita”, alerta. Levando-se ou não em conta o crescimento, a distribuição de
renda, para além dos mecanismos tributários, precisa de mudanças não apenas
entre as elites, mas principalmente, entre a massa trabalhadora. “Mudanças
ocorrem como fruto de pressão. Trata-se também de pensar como estimular a
organização política da população mais pobre para que ela exija as alterações
que julgar necessárias”, avisa Medeiros. “Um governo que se interessa por ações
distributivas é um governo pressionado para isso, um governo que sabe que, sem
isso, não existirá um próximo mandato”.
Reprodução integral da matéria Reverso da Fortuna da revista
Pesquisa Fapesp 115 de setembro de 2005. Pág. 78-83