quinta-feira, 24 de abril de 2014

Resumo: Drogas, conflito e os EUA. A Colômbia no início do século de León Valencia

No canto esquerdo temos uma guerrilheira das Farc-EP e a um direita paramilitar. Apesar de todas as divergências ideológicas ambos movimentos foram e continuam sendo financiados pelo rentável cultivo da coca.
Drogas, conflito e os EUA. A Colômbia no início do século.
León Valencia procura entender a profundidade que o plantio, colheita, beneficiamento e o tráfico de drogas (em especial a cocaína) tomou na Colômbia de fins da década de 1980 até o Plano Colômbia que chegava ao fim de sua primeira fase durante a publicação do texto em 2005, e os seus reflexos em todas as instâncias da sociedade colombiana.
O plantio de plantas psicoativas começou com a maconha em 1970, em pouco tempo foram introduzidas também à papoula e a coca vinda da Bolívia e do Peru. Apesar da variedade, foi no cultivo da coca que a Colômbia ganhou destaque controlando cerca de 60% do comercio internacional.
O autor chama a nossa atenção para o fato de que, o crescimento desse comércio ilegal trouxe consequências drásticas para toda a sociedade colombiana. Segundo ele “o narcotráfico veio potencializar outros fenômenos presentes na vida colombiana: violência das guerrilhas e dos paramilitares, o clientelismo e a corrupção, a cultura do jeito e a desinstitucionalização do país”. Que embora existissem há muito tempo, se mantinham separados até esse momento.
Em 1987, um grupos de especialistas preparou um relatório sobre a violência na Colômbia e a distinguiu em três tipos: a dos delinquentes comuns, a do narcotráfico e a de motivação política. Estes tipos de violência tinham dinâmicas separadas, mas ficou evidente que em 1990, eles começaram a se articular.
Essa articulação entre os três tipos de violência emitiu sinais claros de que o Estado colombiano poderia entrar em colapso, desestabilizando toda a região andina. O que começou a preocupar os EUA.
Não demorou muito para se descobrir que o dinheiro do narcotráfico também havia corrompido a política. Por mais de vinte anos diversas campanhas foram financiadas com o dinheiro das drogas.
Todos esses fatores levaram os EUA mudar sua política para com a Colômbia. Por muitos anos acreditou-se que as guerrilhas colombianas não eram uma ameaça, então a recomendação dada pelo Departamento de Estado Norte-americano a Colômbia era a da contenção ao invés da eliminação que seria muito custosa aos cofres públicos de ambos países. A mudança da política antidrogas ficou visível com a aprovação do “Plano Colômbia”, onde substituíram a contenção pela eliminação.
O problema.
No mundo há cerca de treze milhões de usuários de cocaína, sendo que mais da metade desses usuários são estadunidenses. Os Estados unidos se preocupam com as quase cinquenta mil mortes em seu território todos os anos devido ao tráfico de drogas e se esquecem que nos países produtores como Colômbia, Peru e Bolívia os problemas advindos da guerra contras a drogas causam muito mais devastação. Os dois conflitos são relacionados e indissolúveis.
Pior que os problemas sociais, familiares e de saúde, que as drogas causam, a sua proibição gera as mais variadas consequências e que podem ser extremamente mais devastadoras. A primeira é a perseguição e a marginalização dos usuários. A segunda é o encarecimento inusitado e a alta rentabilidade desse tipo de negócio. A terceira é a formação de grupos armados para sua proteção. A quarta é a corrupção em todos os setores da sociedade. Na Colômbia temos um cenário ainda mais dramático que é o conflito interno armado.
Segundo Richani, se somarmos todos os trabalhadores diretos e indiretos, teremos cerca de um milhão de trabalhadores colombianos que dependem da produção, do beneficiamento e do tráfico de drogas. Se somarmos suas família, e os traficantes varejistas o número de pessoas chega a  quatro milhões ou cerca de 10% da população do país.
É a proibição que multiplica o valor de mercado da droga e gera sua alta rentabilidade. Os grandes narcotraficantes colombianos chegaram a fazer parte do clube das pessoas mais ricas do mundo e mesmo os pequenos agricultores que recebem uma parte mínima de todo o dinheiro da droga, ganham muito mais do que se se dedicassem a culturas legais.
É obvio que nem todo o dinheiro arrecadado com o narcotráfico volta para a Colômbia, contudo é interessante ver que entre 1981 e 1990 o aumento acumulado do PIB da América Latina foi de 12,4%, enquanto que na Colômbia foi de 43,6%, essa diferença entre vizinhos só pode ser atribuída ao tráfico de drogas.
Os paramilitares, apesar de se autoproclamarem uma resposta armada as guerrilhas, surgiram para proteger os negócios lucrativos do tráfico de drogas, que nesse caso servia também para o enriquecimento pessoal de alguns líderes desses movimentos.
As Farc também utilizavam recursos provenientes do narcotráfico para financiar a guerra. Nesta época elas duplicaram o seu efetivo e formaram um verdadeiro exército guerrilheiro que no sul do pais impôs dezesseis derrotas sucessivas às forças militares, entre 1996 e 1998.
Há uma diferença básica entre os paramilitares e a guerrilha. Os primeiros enriquecem individualmente, enquanto as guerrilhas investem tudo na guerra.
Há quem diga que a corrupção é ainda mais prejudicial do que o conflito armado, e na Colômbia uma grande parte da corrupção está ligado ao tráfico de drogas. O processo judicial do presidente Samper demonstra como a corrupção e o narcotráfico tinham penetrado em todas as instâncias do poder.
Muitos estudiosos podem dizer que as drogas são as causas de todos os males, mas não podem negar que a proibição dificulta em muito o combate a elas. Proibição esta apoiada nos malefícios causados pelas drogas, mas principalmente no enfoque moralista dos EUA.
O Plano Colômbia.
A grande ofensiva contra o cultivo, o processamento e o tráfico de drogas na Colômbia começou em 1994 com as fumigações. O período mais intenso de fumigações e de confrontos com os grupos armados ligados ao narcotráfico, começou em 2000 com o Plano Colômbia. O custo destas fumigações e os confrontos custaram aos EUA cerca de 3,3 bilhões de dólares.
Nos primeiros dois anos de Plano Colômbia, quando Andrés Pastrana Arango era o presidente da República, não havia um plano geral para uma mudança fundamental do conflito. Foi só com a posse do Presidente Uribe que se começou a desenvolver um projeto de mudanças de objetivo, da contenção para a eliminação.
Pacificação no Norte e Guerra no Sul.
Álvaro Uribe foi firme em seu projeto de eliminação dos grupos guerrilheiros, dizendo que com eles não haveria negociação nem reconciliação. Já com os paramilitares Uribe abriu diálogo tão rapidamente que surpreendeu a todos.
O Estado Colombiano estava em um impasse. Nem o Estado poderia acabar com a guerrilha, nem a guerrilha tinha condições de chegar ao poder. Uribe rompeu essa situação se lançando com toda a força contra as guerrilhas no sul do país.
Uribe chamou de “segurança democrática” seu projeto de negociar com os paramilitares no norte e derrotar militarmente as guerrilhas no sul.
Uma negociação com muitas interrogações.
Em 2002 os paramilitares afirmaram que só deixariam de atuar quando a guerrilha desaparecesse. Eles se justificavam dizendo que agora possuíam um presidente com vontade de derrotar a guerrilha. O fato é que os paramilitares nunca tiveram força suficiente para derrotar a guerrilha, na verdade eles eram eficientes em pressionar a população civil nas regiões de conflito, nos massacres e no confronto com a ELN (uma guerrilha de menor porte). Perante a comunidade internacional as ações dos paramilitares perdeu legitimidade e uma vez que eles conseguiram acumular muito poder político, social e econômico com trabalho ilegal, estava na hora de encontrar uma base legal para consolidar esse poder.
Já para os governantes do país, havia chegado o momento de recuperar o monopólio da contra-insurgência. Quem assumiu as negociações com os paramilitares foi Carlos Castaño, que concebia essas negociações como uma “submissão à justiça”. No entanto, Carlos Castaño desapareceu ou morreu nas mãos de seus companheiros de armas, em uma rebelião contra essa posição de submissão à Justiça.
As negociações desandaram após o desaparecimento do chefe dos paramilitares. Após esse fato a mesa de negociação passou a ser um cenário de disputa entre os EUA, os paramilitares e o governo. Isso cria um clima de incerteza, incerteza essa que não é apenas jurídica, porque o tipo de negociação e o estilo de pacificação no norte , depende da guerra que se desenrola no sul.
O Plano Patriota é sem dúvida a maior ofensiva que já se fez contra as Farc, contudo essa ofensiva ainda não obteve grandes resultados e os guerrilheiros estão se defendendo bem.
Na defensiva mas longe da derrota.
O presidente Uribe cumpriu a promessa de lançar uma grande ofensiva contra as Farc. Nesse esforço chegou a gastar quase 5% do PIB do país. Isso garantiu grande conquistas para o Estado.
A confrontação direta contra a guerrilha tem ocorrido de duas formas: a primeira é a resposta direta e rápida com contra-ataques decididos contra a ações das guerrilhas. A segunda é lançar ofensivas sobre pontos-chave da guerrilha.
Nos último anos a Farc perdeu cerca de 30% do seu efetivo e seus recursos diminuíram drasticamente. No entanto, o núcleo das guerrilhas ainda não foi atingido e suas estruturas de comando estão intactas.
Alguns analistas precipitados, como Joaquín Villalobos, já falam de uma derrota estratégica da guerrilha. Pode-se avaliar as forças que estão na ofensiva pela extensão dos danos causados ao inimigo, e as que estão na defensiva pelos danos que conseguem evitar, e pela sua capacidade de se proteger. E se uma força defensiva consegue chegar ao fim sem sofrer grandes perdas, tem grande possibilidade de organizar um bom contra-ataque. Villalobos, que dirigiu a guerrilha FMLN com um grande espirito ofensivo, não percebe que grande arte das Farc está na defesa e na preservação.
O presidente Uribe fez um grande esforço ofensivo, apostando tudo na derrota da guerrilha. No entanto os resultados alcançados ainda não são proporcionais ao grande empenho empreendido.
O ataque às zonas cinzentas.
O principal equívoco da política de “Segurança Democrática” talvez seja o tratamento dado a população civil. O presidente Uribe acredita que entre o Estado e a subversão existem “zonas cinzentas”. Crê que todos os moradores destas áreas apoiam ou são complacentes com as guerrilhas. A realidade é que este vínculo existiu durante os anos 80, mas agora é quase inexistente. Com a Queda do muro de Berlim e as transformações havidas no mundo, esfumaçou-se a ilusão de uma insurreição triunfante.
Atualmente as guerrilhas se apoiam em setores marginais, ilegais e excluídos da sociedade. São pessoas que têm a dupla condição de serem vítimas e de fazerem vítimas. Pessoas que resumem a tragédia de uma nação que obriga milhões de pessoas a viver das migalhas de negócios sujos.
Diante de um provável fracasso.
O Council on Foreign Relations, um centro influente do pensamento americano, esteve na Colômbia em 2003 e formulou um relatório que diz claramente que a região está caminhando para um colapso, que a democracia está ameaçada e que a politica dos EUA na região é míope.
O relatoria propõe a “dissolução do conflito”, onde se mantem a repressão ao tráfico, ao consumo de drogas e aos grupos armados, mas se enfatiza a superação das causas econômicas e sociais que estão no funcho do conflito. Dissolução ao invés de eliminação dos atores envolvidos. O ponto de partida é que a Colômbia necessita de uma “assistência dura” (repressão) e uma “assistência branda” (inclusão) e os EUA apenas se concentrou na primeira.
Propõe que haja um equilíbrio entre os esforços destinados a combater o cultivo e o tráfico de drogas e, de outro, os recursos e esforço orientados para a redução do consumo. A nova estratégia sugerida é sem dúvida a mais inteligente já proposta até o momento, mas não questiona a base proibicionista da política norte-americana.
Para o autor a ideia de dissolução do conflito é boa, mas o caminho mais certo para o fim da guerra seria a negociação política e a inclusão, em outras palavras, a reconciliação.

A reconciliação é central e não lateral. Tentar eliminar os atores é uma catástrofe. Tentar dissolver o conflito é uma política mais benévola e pode dar resultados, mas o caminho da reconciliação é que pode trazer melhor rendimento para a democracia, abreviando o tempo de confrontação.

Fonte:
VALENCIA, León: Drogas, conflito e os EUA. A Colômbia no início do século. Estudos avançados, 19 (55), 2005, p. 129-151.

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Fichamento: Povo Enfermo ou Raça de Bronze? de Pablo Stefanoni.


(P.97) Pueblo Enfermo o Raza de Bronce? Etinicidad e imaginación nacional en Bolivia (1900-2010).
Os trabalhos sobre “indianidade” na Bolívia derivam de duas imagens opostas: a raça de bronze e o povo enfermo, ambas designações derivam do livro do pensador político boliviano Alcides Arguedas. Esta oposição pode parecer antagônica em aparência, mas são complementares na prática.
Durante grande parte do século XX a raça heroica e milenar foi considerada ao mesmo tempo construtora da civilização tiwanakota e inca e uma raça vencida e degenerada que não agrega nada ao progresso nacional. Isso gerava uma imaginação étnica nacional: a reivindicação de um índio ideal frente ao desapreço do índio real. Ou Incas sim, índios não.
A diferença do atual processo de (re)indianização boliviano, dos anteriores indigenismos românticos do Estado (que buscavam integrar o índio a nação) é que este primeiro vem de baixo pra cima e é feito por índios de carne e osso (camponeses, comerciantes, operários), que questionam a sua real integração em seu próprio país, onde ainda são tratados como cidadãos de segunda classe.
(P.98) A Bolívia conviveu, ao longo de seus dois séculos de história republicana, com sérias duvidas sua própria viabilidade. A inviabilidade de um verdadeiro Estado nacional, a exclusão étnico-social, sua desafortunada tentativa de inserção no Ocidente e sua dificuldade de desenvolvimento. Desde o século XIX, existe a inseguridade geográfica (temor do separatismo de Santa Cruz) e a leitura pessimista da história nacional (o país que perdeu todas as guerras e grande parte de seus território para seus vizinhos) o que foi gerando a ideia de que a Bolívia, não era nada mais do que um enclave mineiro carente de instituições. Somado a isso, está a figura do índio, que as elites nacionais se referiam com amargura, pois a diferenciavam de seus vizinhos mais branqueados como Chile e Argentina.
José Luis Gómes-Martinéz, dizia que durante o século XIX e início do XX os términos nação boliviana ou patriotismo eram palavras vazias para a maioria dos bolivianos. As elites liberais seguiam pensando em términos de civilização ou barbárie. Conservadores e liberais se perguntavam se a Bolívia estava em risco de desaparecer por ação das leis naturais. Para os liberais a educação seria o melhor instrumento de regeneração de um povo degenerado, eles acreditavam que a modernização do país devia se fazer com o índio, seriam eles um fator de progresso.
(P.99) Então em 1905, foram criadas – sem grandes resultados – as escolas indígenas que ensinavam o alfabeto, as quatro operações matemáticas e um pouco da doutrina cristã.
(P.100) Da mesma maneira que outros Estados pós-coloniais – como os africanos ou asiáticos do século XX -, a sociedade civil boliviana vai parecer, durante mais de um século de vida republicana independente, uma associação fechada de grupos da elite moderna, presos em enclaves e separada da vida popular das comunidades. O Estado nem sequer chegava a todo território nacional.
Contudo, esse fracasso das promessas liberal-positivistas de modernização e desenvolvimento do país foi extremamente produtivo em términos intelectuais. A necessidade de que a Bolívia analisasse a si mesma gerou ampla atividade intelectual no país. A pergunta era: como conciliar ambas caras de uma realidade nacional, que se apresentava hispânica e índia.
(P.101) Franz Tamayo em seu livro Creación de la pedagogía nacional (1910), sustenta que o índio é a fonte de energia nacional. Já Alcides Arguedas em seu livro Pueblo enfermo (1909) apresenta previsões pessimistas. As continuas reedições de ambos os livros mostram que há na Bolívia, não um simples interesse histórico, mas uma permanente irresolução dos problemas ali planteados; não é por acaso que ele é um dos países mais vezes refundados do mundo.
Civilisation vs. Kultur.
O povo enfermo, segundo Arguedas, são os indígenas, em especial os aymaras, que assim como a terra da Bolívia é estéril e bruto. Arguedas ainda se lamenta do fato das correntes migratórias de europeus para a América, não terem chegado com força a Bolívia, assim como chegou a Argentina, Chile e Uruguai.
(P.102) Mais tarde Arguedas escreveu Raça de Bronze, contudo dando uma tonalidade diferente da dada por Medinacelli que a incluía como percursora do indigenismo. Para Arguedas, pior que o índio “puro”, era o mestiço que agregava a pior parte dos aymaras dos uéchuas e dos espanhóis. A história arguediana contribuiu para a desvalorização da autoestima nacional, e como assinalaram alguns de seus críticos, mais que Pueblo enfermo, a obra deveria se chamar Povo explorado, o que sem duvida teria dado um tom potencialmente mais emancipatório ao livro.
Tamayo em seu livro Criação da pedagogia nacional, chama todos a construir o caráter nacional e critica todos os que difamam a “raça boliviana” (índios) vendo eles somente como elementos negativos da sociedade. Segundo o autor a raça está deprimida e estupefata, mas dali não deve emergir o pessimismo, mas a certeza de que a função de uma nova pedagogia é se esforçar para criar “a consciência nacional, que equivale a despertar as energias da raça”, e para Tamayo, é o índio quem concentra 90% dessa energia nacional.
(P.103) Contudo, Tamayo também entende o mestiço entre branco e índio (cholo) como um ser parasitário de segunda categoria, mas sustenta – diferente de outros autores – que as causas dessa falta de caráter vêm de seu lado branco. O autor ainda entende que existe uma degeneração extremamente rápida do homem branco americano, frente ao seu par europeu.
(P.104) Tamayo ainda admite que “por uma fatalidade histórica” o futuro da Bolívia será mestiço, devido a debilidade do branco e o desequilíbrio colonial republicano em desfavor do índio.  Contudo essa visão (o ideal de uma nação mestiça) será recuperada mais tarde (duas décadas depois) pelo nacionalismo revolucionário e será carregada de valores positivos, propondo a ideia de “bolivianidade”.
Era o novo clima da época. O fim da ilusão (ingênua) no progresso lançou os intelectuais em diversas aventuras teóricas antiliberais. Em 1929 via-se o entusiasmo das conferencias de La Paz que considerava a América como o continente com a maior força transformadora da humanidade e a Bolívia como uma possível potencia dentro dela, uma vez que em seu território há a parte mais antiga da humanidade, sendo essa sua melhor promessa de futuro.
(P.105) Surgiram as mais diversas correntes:
Como a de Roberto Prudencio que chamava o mestiço e o criollo para construir um novo ciclo de renascimento cultural sobre as bases do Tiwanaku (o Paternon da América).
Fernando Diez de Medina, fundador do pachakutismo, um movimento distante do marxismo e do fascismo que proclamava uma nova síntese politica de estrutura tipicamente boliviana, onde as classes e as raças se fundiriam.
Cecílio Guzmán de Rojas, pintor, que estetizou o índio de acordo com a beleza grega, de acordo com o bom gosto das classes altas (como seu Cristo Aymara de 1939).
(P.106) O excêntrico Tristán Marof (seu nome verdadeiro era Gustavo Navarro) mesclou o marxismo com o indigenismo. Ele estava convencido de que os indígenas eram socialistas por natureza e que eles deveriam ser a vanguarda da revolução boliviana.
Temos também Jaime Mendoza que dizia ser o “núcleo andino” um fator de unidade nacional, além de refutar as pessoas que achavam a Bolívia um absurdo geográfico e considerar que a grandeza da Bolívia estava em seu índio.
A obsessão de todos estes escritores, de diferentes perspectivas, era a mesma. Suprir a falta de um sentimento e de um caráter nacional em um país-enclave com diversas singularidades étnicas, culturais e psicológicas.
A decadência do Ocidente.
(P.107) Será o “mito do Chaco” (guerra perdida contra o Paraguai 1932-1935) e a incapacidade do Estado Oligárquico de liderar o conflito, o responsável por criar as bases do nacionalismo efetivo e politicamente eficiente. Serão os militares (inicialmente socialistas, depois nacionalistas) os encarregados de imaginar a nação.
O filósofo Humberto Palza contribuirá a esta corrente, articulando elementos do nacionalismo, telurismo, socialismo de Estado e, sobretudo o antiliberalismo (1939). Palza considerava o homem como uma expressão do espirito da terra e das forças telúricas, sustentando que não existia cultura universal, nem homem, nem humanismo universal. Cada pessoa e cada cultura são sociogeográficas. O homem indoamericano sente e pensa a sua maneira, os bolivianos devem, para reconstruir a sua identidade, recorrer ao espirito dos Andes e a energia cósmica da raça indígena. Para ele o regime que melhor fez isso foi o nacional-socialismo alemão.
(P.108) O novo indigenismo teve uma variante educativa-pedagógica com Elizardo Pérez que unia trabalho e educação como um dos princípios do coletivismo incaico. Um indigenismo mais maduro e inspirado nas obras de Mariátegui foi proposto po Carlos Medinaceli em 1938.
Contudo, desde os anos trinta, as obras de Lenin, Plejanov e Bujarin inundaram as livrarias bolivianas. O que levou a Bolívia se tornar o pais sul-americano com mais influencia trotskista. Surgiu daí um marxismo mineiro que entraria em constante tensão com o Estado nacionalista-revolucionário e com sérios problemas de incorporar a problemática étnica.
(P.109) Imaginar a nação, desde o poder.
O coronel e herói da Guerra do Chaco German Busch tomou o poder mediante um golpe de Estado em 1936, anunciando um novo regime: “um socialismo de Estado prudente, gradual e sem convulsões que estabeleça na Bolívia um regime de justiça social. Era o começo do chamado socialismo militar. Um grupo encabeçado por Carlos Montenegro ocupou a exclusivo Club da la Unión, cujos membros eram o creme da elite local, colocando no alto do edifício uma faixa com os dizeres Comitê Revolucionário. Este ataque ao símbolo máximo da oligarquia horrorizou a elite tradicional boliviana.
O sucessor de Busch, David Toro nacionalizou a petroleira Standart Oil & Company, decretou a sindicalização obrigatória e criou o Ministério do Trabalho, além de criar o primeiro código de leis trabalhistas.
(P.110) Busch voltou ao poder com o apoio dos nacionalistas e a politica seguiu um caminho sinuoso e contraditório e logo radicalizou, aliando-se aos anarcossindicalistas.
(P.111) Busch suicidou-se e abriu espaço para uma nova onda conservadora, contudo os avanços conquistados foram minando seriamente o Estado oligárquico, gerando um empasse de hegemonias que se resolveu em 1952.
Entre as décadas de 1930 e 1950 período de iniciativas nacionalistas e restaurações liberais, será o regime de Gualberto Villaroel o responsável por dar força aos contornos da alma nacional, contra aquele sentimento de inferioridade que corroí alguns cidadãos. (P.112) Apesar da curta duração de seu regime (1945-1946), ele foi o prelúdio e o impulso emotivo da revolução nacional de 1952. As teses de Ayopaya e de Carlos Montenegro sintetizam em grande parte a ideologia que impulsionou a chamada Revolução Nacional, que imaginou um país integrado regionalmente, social e etnicamente e o fim do Estado de enclave mineiro-feudal.
(P.113) Contudo na política  se  implementou um co-governo entre o Estado e a Central Operária Boliviana (COB), uma forma paradigmática de participação politico-social, levantada sobre a base da forte cultura sindicalista e corporativista dos setores populares bolivianos.
(P.114) Em 1955 foi criado um novo código de educação transformando a educação de castas em educação de massa, com enfoque principal no campo que possuía poucas escolas. Contudo, enquanto a escola urbana primava pela educação integral do aluno, a do campo tinha 8 metas específicas que deveria desenvolver nos camponeses: melhor higiene, alfabetização básica, ensinar agricultura, aumento da capacidade técnica e manual para a indústria e artesanato, manter o amor pela tradição, luta contra o vicio do álcool e da coca, acabar com os preconceitos e superstições e desenvolver a consciência cívica.
(P.115) Ao que tudo indica a índio camponês tinha uma conotação negativa e era considerado um dever da educação arrancar essas vícios e práticas.
Diversidade contra Igualdade.
Duas décadas mais tarde, em 1985 frente a uma profunda decadência politica e moral do nacionalismo revolucionário o próprio MNR e Paz Estenssoro propuseram abandonar o capitalismo de Estado a favor do liberalismo econômico. Sendo este liberalismo proposto pelo Consenso de Washington aperfeiçoado na Bolívia por Gonzalo Sánchez de Lozada e seu vice aymara Vitor Hugo Cárdenas.
(P.116) A imaginação recaiu então sobre uma nova aliança de classes global, o que resultou em uma série de iniciativas, como a incorporação do caráter multiétnico, plurilíngue e multicultural da nação boliviana.
Surgiu a Lei de Participação popular que era uma tentativa de “revolução passiva” frente as crescentes reivindicações étnicas como o Manifesto Tiwanaku (1973) dos indianistas kataristas. Este manifesto surgiu das frustrações das primeiras gerações indígenas que nasceram na cidade e ingressaram nas fileiras das universidades. Eles sentiam as diretamente a discriminação em sua própria terra. Pode-se dizer que o katarismo é produto da polarização entre o discurso igualitário da mestiçagem e as relações sociais da vida real e tinha como objetivo a reinvenção do índio como sujeito político.
(P.117) No campo da educação ocorreu uma reforma nacional com a lei 1565 que propunha reforçar os valores históricos e culturais da nação boliviana, em toda sai diversidade e sua riqueza multicultural e multiregional. Paradoxalmente, a reforma que buscava promover a diversidade, foi aos poucos unificando e acabando com as diferenças entre as escolas do campo e da cidade.
 (P.118) Esta reviravolta em favor da diversidade era extremamente útil aos neoliberais, que com sua ênfase no étnico-cultural tentava debilitar a ideia de Estado Nacional. Esta cara “participativa” e “pluri-multi” do neoliberalismo era mais atraente aos intelectuais progressistas e ao indigenistas, o que explica a surpreendente união entre Kataristas e neoliberais. Foi a tentativa mais séria de consagração da diversidade contra a igualdade, eles queriam uma desigualdade mais equitativa entre os diferentes grupos étnicos, e não acabar com a desigualdade como um todo.
(P.119) E um dia... chegaram ao poder.
Cem anos depois dos escritos de Tamayo e Arguedas, os índios não só não haviam desaparecido, como no começo XXI se sublevaram como não faziam a muito tempo. Essa série de manifestações acabou por levar a presidência o primeiro presidente indígena da história da Bolívia, Evo Morales, eleito com 54% dos votos.

(P.123) Como vimos durante todo o texto, geralmente as ideias sobre o índio e a etnicidade durante todo o século XX, são geralmente “ocidentais”. Ou como afirma Silvia Rivera, muitos dos discursos descolonizadores provem do “centro”, marcados por “uma versão logocêntrica e nominalista da descolonização”. 
Fonte: 
STEFANONI, Pablo: Pueblo Enfermo o Raza de Bronce? Etinicidad e ímaginación nacional en Bolívia (1900-2010). In Maristela Svapa et alii. Debatir Bolívia. Perspectivas de um proyecto de descolonización. Buenos Aires: Taurus, 2010, p.97-123.

quarta-feira, 9 de abril de 2014

Resumo do cap. VI do livro Autonomía y Subordinación en el Sindicalismo Latino Americano de Francisco Zapata.

Perón faz o juramento após sua primeira vitória como presidente, em junho de 1946 (Foto: AFP)
Por: William C. T Rodrigues.
Cap. VI: Trigo, carne y sindicatos en la pampa húmeda argentina.
O movimento sindical argentino surgiu por volta de 1888 com a criação da Unión Ferroviaria. Muitos outros sindicatos surgiram posteriormente e entre os mais importantes deste período esta a FOA (Federación Obrera Argentina) de inspiração anarquista, que posteriormente (1904) passou a se chamar FORA (Federación Regional Obrera Argentina). A trajetória do sindicalismo argentino se consolida com a criação da Confederación General del Trabajo (CGT) em 1930 e alcança sua auge durante o governo Perón.
O surgimento e a expansão dos sindicatos argentinos está intimamente ligado a exportação de carne. O desenvolvimento deste mercado trouxe capital, imigrantes europeus e migrantes de outras regiões da Argentina. Isso criou as bases para a constituição de um movimento sindical ativo e de grande relevância em todo o continente, que em 1945 chegaria ao seu auge.
Francisco Zapata divide a trajetória do sindicalismo argentino em dois longos períodos: um pré-peronista (1880-1943) e outro peronista (1943-1955). O autor ainda admite a existência de um terceiro período que é o chamado peronismo sem Perón que vai de 1955 até a atualidade.
O sindicalismo argentino entre 1880 e 1943.
A formação do proletariado argentino;
O crescimento econômico propiciado pela exportação da carne e do trigo foi seguido por um processo de modernização do país, onde portos e as ferrovias foram ampliados, e consequentemente houve um crescimento urbano.
Esse crescimento transformou a Argentina na menina dos olhos dos imigrantes europeus, que vinham a América em busca de emprego e traziam na bagagem ideologias políticas, em especial o anarquismo.
A criação das organizações, o conflito sindical e o Estado.
Com a base social formada por ferroviários, operários, portuários e etc, a FOA e a FORA desenvolveram a tática da ação direta com diversas greves pelo país. A primeira década do século XX é marcada pelos diversos enfrentamentos entre os grevistas e as forças repressivas do Estado, controladas pelas alas mais conservadoras da sociedade que temiam esta crescente ameaça a sua dominação. Esses conflitos mostram que os sindicatos anarquistas não se baseavam na negociação entre patrão e empregado, mas sim na mobilização das massas pelas ruas de Buenos Aires.
Outro fato interessante sobre os sindicatos anarquistas são que eles não eram vinculados a nenhum dos partidos políticos progressistas da época, como a Unión Cívica Radical e o Partido Socialista. Pelo contrário a FORA havia surgido de um rompimento interno com o partido socialista.
A política operária de Yrigoyen facilitou a expansão sindical e debilitou os anarquistas, que enfrentaram o crescimento dos socialistas que eram mais propensos a participar das negociações com o Estado.
A questão ideológica.
Os sindicatos argentinos estavam divididos pelas ideologias anarquistas e socialistas. Essa divisão ideológica pode explicar o motivo de tanta atuação e radicalismo nas suas primeiras três décadas de vida, já que ambas buscavam conseguir o apoio dos trabalhadores.
Os socialistas seguiam a linha da socialdemocracia europeia, buscando a inserção dos trabalhadores no capitalismo. Assim, o triunfo eleitoral e a chegada ao poder era seu objetivo principal. Por outro lado, os anarquistas seguiam a linha mais radical da ação direta. Assim, os anarquistas argentinos – em sua maioria imigrantes – chocaram-se diversas vezes com os socialistas que representavam os artesãos nascidos no país.
A negativa dos anarquistas de assumir um projeto político aos poucos foi enfraquecendo o movimento, uma vez que com o governo Yrigoyen a ação violenta e radical deixou de fazer sentido entre a classe operária. O pensamento populista fez com que o operário se sentisse parte da nação, desmanchando a consciência de classe excluída, necessária para o anarquismo.
O sindicalismo argentino entre 1930 e 1943.
Uma vez institucionalizado, o sindicalismo argentino teve que fazer frente a uma etapa de diversificação econômica. Após o impacto da crise de 1929, as autoridades conseguiram impulsionar a indústria manufatureira. Com isso, durante a década de 1930 a acumulação de capital na Argentina seguiu em um ritmo superior ao do capital estrangeiro, e o numero de operários da indústria chegou a quase seiscentos mil em 1939, destes, quatrocentos mil eram afiliados a algum sindicato.
Em 1930 surge a CGT, e as greves ocorrem por toda a década, em especial por motivos financeiros, como a reivindicação por melhores salários. Com a eclosão da Segunda Guerra Mundial, o quadro geral do trabalhador argentino tem uma melhora.
Dentro da CGT há uma divisão ideológica entre socialistas e comunistas, entres conflitos terminam com a divisão em 1943 da CGT em CGT 1 e CGT 2. Esta rivalidade representava uma tendência dentro do sindicalismo argentino: onde um lado era partidário do jogo institucional e o outro mais radical.
A antessala do governo peronista: 1943-1945.
Foi a impopularidade dos governantes argentinos entre 1930 e 1943 que levou ao golpe de Estado que desencadeou a ascensão de Perón até o poder. O autor considera que essa transição foi mais política do que econômica. Isso explica o grande esforço de Perón para convencer os trabalhadores, desde sua passagem pelo Departamento Nacional de Trabalho (DNT) de que ele representava o alvorecer de uma nova era. Isso veio através dos diversos direitos trabalhistas cedidos por ele. Aos poucos Perón foi controlando a aparato sindical, especialmente a CGT 2, comandada pelos comunistas. Essas medidas foram determinantes para a mobilização das massas que levou Perón ao poder.
O governo peronista: 1945-1955.
Grande parte das medidas que consolidaram Perón no poder depois de 1945 vieram do período de transição iniciado em 1943.
As origens do peronismo.
O surgimento do peronismo tem, além das ambições de Perón e a conjuntura política que facilitou o acesso dele ao poder, importantes bases que é importante assinalar. As migrações do interior rumo as cidades industriais como Rosário, Córdoba e Buenos Aires criou uma “nova” classe operária que debilitou o impacto que os imigrantes europeus (classe operária “velha”) na ação sindical. Além de que os migrantes não encontram representatividade entre os socialistas e comunistas, estando disponíveis ao chamado do líder carismático. Assim fica claro que o apoio decisivo a Perón veio dos operários manuais, de migrações recentes, originários de regiões atrasadas e rurais, que ao tomarem contato com o mundo moderno e urbano viram em Perón a possibilidade de resolver seus problemas de desenraizamento.
O aparato peronista.
Além desses fatores estruturais, não devemos nos esquecer o impacto das medidas que ele tomou durante sua passagem pelo DNT. Primeiramente ele criou um sistema de dependência dos sindicatos ao Estado, além de subordinar e excluir os sindicatos que lhe eram hostis. Ele ainda tinha o poder de fixar salários e criar projetos sociais, conseguindo assim um controle total sobre o desenvolvimento da economia. Isso criou um regime em que trabalhadores, empresários e o Estado deveriam construir uma aliança que tinha por objetivo enaltecer a nação. Essa o chamado justicialismo, uma espécie de terceira via entre o capitalismo e o comunismo.
A trajetória da ação operária.
As greves do inicio do governo peronista tem a ver com sua estratégia de consolidação política. O conflito dos primeiros anos serviu de advertência aos patrões, a respeito da necessidade de remuneração justa de seus empregados e de outras reinvindicações sociais.
A ideologia e a consciência operária.
O sindicalismo sob a ótica peronista, não era um sindicalismo classista, mas que agregava todos os “produtores” contra os parasitas. Preconizando uma convivência harmoniosa entre classes, a subordinação dos interesses dos trabalhadores aos da nação e a obediência a um Estado paternalista.
O pós-peronismo.
O pós-peronismo é marcado por três fases: 1955-1973 que precede o regresso efêmero de Perón ao poder (1973-1974), 1976-1982 durante o regime militar e 1982 com a redemocratização até a eleição de Menem.
Em cada um desses períodos é possível observar a presença considerável do sindicalismo no país. Apesar das dificuldades únicas de cada um dos períodos.
Fonte:
ZAPATA; Franscisco. Trigo, carne y sindicatos en la Pampa húmeda argentina. p. 95-111. In Autonomia y Subordinación en el sindicalismo latinoamericano. México: F.C.E. 1993

quinta-feira, 3 de abril de 2014

Texto sobre a leitura: A Reforma Universitária de Córdoba (1818) de José Alves de Freitas Neto.

Por: William C. T Rodrigues.
Apesar de presente e atuante em toda a História, em geral o jovem não é visto como um grupo social separado, nem que mereça grande destaque para esta disciplina quanto, por exemplo, a mulher e a criança.
São poucos os momentos em que a história reconhece o jovem como um ator social ou um agente único de transformação política e não o “dilui” em meio aos outros grupos sociais o tornando apenas mero participante de um movimento. São raros os momentos, como em de maio de 68, os caras pintadas de 1992 e as lutas pela reforma universitária de Córdoba (1918), em que os jovens passam para a história com movimentos vitoriosos compostos majoritariamente por eles.
José Alves de Freitas Neto busca compreender em seu texto, o que acontecia de tão grave com a Universidade de Córdoba, ao ponto de criar as bases para o surgimento de um movimento estudantil tão forte que criticava não somente a estrutura interna desta universidade, como também a estrutura de ensino de todas as universidades eurocêntricas, escolásticas e conservadoras de nosso continente. Freitas quer entender o alcance e a importância deste movimento que foi colocado pelo intelectual argentino Oscar Terán no mesmo patamar de influência, para os povos latino-americanos, da Revolução Cubana.
As universidades, tal como a conhecemos, surgiram na Europa da Idade Média e eram voltadas exclusivamente para os estudos das humanidades. A partir dessa ideia, pode-se supor que os movimentos estudantis surgiram na Europa, “berço” das universidades. Contudo, o primeiro movimento estudantil que se tem notícia surgiu na Universidade de Córdoba, daí sua importância para o continente e para o mundo.
Diferentemente dos portugueses, os espanhóis criaram diversas universidades em suas colônias, a Universidade de Córdoba foi a primeira da Argentina (1621) e a quarta na América espanhola. Surgiu com cursos tidos como importantes para a época como filosofia, teologia e normas jurídicas.
Entretanto, este pioneirismo do século XVII tornou-se atraso no século XX. A educação ainda era escolástica e controlada por jesuítas. A cátedra era vitalícia e praticamente hereditária, além de ser controlada não por educadores, mas por ilustres locais que buscavam prestigio. O ensino embasado nos argumentos de autoridade e a distancia entre mestres e estudantes era uma regra.
Dentro da ótica do pensamento de Domingo Faustino Sarmiento (1811-1888), que hoje entendemos anacrónico, a tímida modernização da Universidade após a República se deu pela ínfima adesão dos cordobenses ao movimento. É como se Córdoba vivesse as margens dos processos de consolidação da República. Segundo ele, até 1816 ela (a Universidade) desprezava conhecimentos importantes como a matemática, os idiomas a física, o direito público e a música, o que pode ser explicado, segundo seu ponto de vista, por uma relação entre o interior (barbárie) e a capital portenha (vanguarda do país).
O fato foi que em 1918, questões pontuais tomaram corpo e logo se voltaram contra a administração. Sem serem atendidos, os estudantes iniciaram uma greve geral e lançaram um manifesto à juventude argentina em 31 de março. No dia 2 de abril, a administração fechou as portas de Universidade e não cedeu as reivindicações.
O movimento tomou corpo e apoio. Em Buenos Aires foi fundada a Federação Universitária Argentina (FUA), agregando estudantes de todo o país em torno das demandas de Córdoba. O presidente Hipólito Yrigoyen, simpático a nova classe média argentina, interviu em Córdoba em 11 de abril.
O interventor nomeado, José Nicolás Matienza deu inicio a reestruturação em moldes liberais, acabou com a imobilidade do corpo docente, e organizou eleições para o preenchimento dos cargos de reitor e de membros do conselho universitário. Apesar de conseguirem a ampla maioria das cadeiras do conselho universitário, o cargo de reitor ficou com o conservador Antonio Noraes, o que demonstrou ao estudante que as reformas não foram tão democráticas e nem mudaram as estruturas internas do poder.
Outra greve teve inicio, os estudantes conseguiram apoio de sindicatos, políticos de esquerda e intelectuais como José Ingenieros e Manuel Ugarte.
Em 21 de junho de 1918, os estudantes aprovam o Manifesto Limiar ou La Juventud Argentina de Córdoba a los Hombres Libres de Sudamérica, que é considerada a principal carta de princípios da história das universidades latino americanas publicada até então.
Nela os estudantes criticam o cotidiano da Universidade e a tirania da docência. Afirmam ter rompido com o último elo que os prendiam ao atraso e a imobilidade, sendo eles os representantes do poder de renovação da juventude. E apresentam suas propostas políticas e reivindicações reformistas.
O impasse seguiu pelos meses seguintes. Até que em 7 de agosto o reitor Nores renunciou e em 9 de setembro os estudantes tomaram o controle e a direção da Universidade. O presidente Yrigoyen designou como interventor o próprio ministro da educação José Salinas, que com o apoio dos estudantes levou a cabo o projeto de reforma, tal como reivindicado pelos estudantes, assegurando o triunfo do movimento que se espalhou por toda a América Latina.
Segundo José Alves de Freitas Neto “o legado deixado por este movimento na educação superior latino-americana foi a defesa da autonomia universitária, a mudança no processo de ensino e docência e a democratização da universidade, tanto em sua gestão como na garantia da permanência de estudantes de todos os grupos sociais”.
Por fim, o autor acredita que o exemplo de Córdoba deve ser seguido. Contudo, não se deve entender o movimento como um monumento estático sobre um passado de lutas frente a um presente “pouco desafiador”. O que Neto propõe e que compreendamos que hoje vivemos novos tempos e que os desafios do Ensino Superior deste novo século são diferente, devemos então, como homens do nosso tempo – seguir o exemplo de Córdoba – mas com reivindicações que busquem superar as necessidades deste novo milênio.
Bibliografia:
Neto, José Alves Freitas. A Reforma Universitária de Córdoba (1918): um manifesto por uma universidade latino-americana. Revista de Ensino Superior Unicamp, p . 62-70.