sábado, 3 de setembro de 2011

Século XX uma Biografia não autorizada de Emir Sader.

Como classificar o século XX? Como o século do capitalismo norte-americano? Como o século das guerras? Como o século da tecnologia? Para Emir Sader o século pode ser caracterizado como a construção da hegemonia norte-americana, sobrepujando a Inglaterra, derrotando a rival Alemanha dentro do bloco capitalista e ajudando no fracasso do socialismo soviético.
Século XX: que século foi esse?
(P.119) Visto se seu final, foi, sem dúvida, o século do capitalismo norte-americano. O final do século XIX viu o surgimento dos EUA como potência mundial e o século XX viu a sua consolidação inquestionável. Da projeção na Primeira Guerra à afirmação na Segunda, passando pela disputa com a URSS durante a Guerra Fria até sua consolidação como única superpotência, a história do século XX poderia ser contada como a história do capitalismo norte-americano. (...)
No entanto, o século XX poderia também ser definido como o século das guerras. No período entre 1914 e 1991, mais homens foram mortos ou abandonados à morte por decisão humana como nunca antes. Um cálculo dessas megamortes totaliza 187 milhões de pessoas. Por isso, para Hobsbawm, o século XX foi “o século mais assassino de que temos registro”.
(P.120) Ou se preferir, o século XX pode ser caracterizado como o século da tecnologia, aquele em que a modernização da vida, em todas as suas dimensões, assumiu um ritmo incomparável com tudo o que se havia vivido. Levando em consideração que grande parte dessas descobertas são provenientes do século anterior.
(P.121) Assim, o homem da virada do século XIX para o XX podia, diferente de uma geração anterior, viajar de trem, ouvir música em casa, falar por telefone, mandar mensagens pelo telégrafo, fotografar, usar lâmpadas elétricas. Mudanças incomparavelmente maiores do que assistimos na virada do século XX para o XXI. É muito mais radicalmente novo falar por telefone do que avançar do telefone tradicional para o celular. Maior é a novidade em andar de trem do que passar a andar de trem bala.
Com todas essas invenções, estavam dados os fundamentos para o tipo de vida que se considerou patamar de bem-estar ao longo do século XX. A elas se somaram posteriormente o avião, a TV e o computador.
Essas grandes descobertas feitas no final do século XIX, foram generalizadas e consumidas, mesmo que de forma desigual, por todo o século XX.
(P.122) O século XX foi o século do predomínio norte-americano, que já no século XIX, com a guerra contra a Espanha, já se projetava como uma grande força imperial, não só pela demonstração de força, mas pela ambição de se apropriar de Cuba, Porto Rico e das Filipinas, começando a constituir exatamente aquilo que o cubano José Martí temia – um império desenhado a partir do controle de todo o novo continente, de que a Doutrina Monroe foi a formulação ideológica. Comparando-se a Inglaterra no século anterior.
(P.123) Quando o império britânico começou a declinar, o processo de construção de uma hegemonia alternativa deu-se em duas frentes – a norte-americana e a alemã. As guerras iniciadas em 1914 e em 1939, respectivamente, definiram qual delas triunfaria.
Mas antes mesmo do final da guerra de 1914, um novo fenômeno viria a agregar novos elementos de complexidade àquela disputa hegemônica – a Revolução Russa. A entrada dos EUA e a saída da Rússia da Primeira Guerra começou e desenhar o novo quadro de disputas estratégicas que viriam a acontecer, só que agora não entre potências da mesma natureza econômico-social e sim contra uma potência que reivindicava a ruptura com o capitalismo e a construção de uma sociedade socialista.
Assim, o período de hegemonia norte-americana incluíra, pela primeira vez na história, uma disputa entre sistemas econômicos –sociais diferentes – o capitalismo e o socialismo – disputa que terminará por marcar profundamente o século XX.
Se a afirmação hegemônica dos EUA se deu ao longo das duas guerras mundiais, a partir do término delas desenhou-se o novo quadro de enfrentamentos estratégicos, que teve na polarização EUA/URSS o seu eixo.
Existem ainda outros fenômenos que também marcaram a fisionomia do capitalismo como a crise de 1929, o surgimento do capitalismo de Estado (Estado keynesiano), o nazismo, o fascismo, as revoluções chinesas e cubana, entre outros.
(P.124) Se a hegemonia inglesa do século XIX foi, a partir da derrota de Napoleão, uma hegemonia relativamente linear ao longo de todo o período, o mesmo não pode ser dito da hegemonia norte-americana. Esta pode ser dividida entre um período ascendente até o final da Segunda Guerra; e o período da Guerra Fria, onde a predominância norte-americana foi questionada de fora do capitalismo, pelo URSS.
Essa periodização, de caráter político, se assenta num fenômeno histórico de maior proporção: o desenvolvimento do processo de acumulação capitalista. A diferença entre o “curto” século XX de Hobsbawm e o “longo” de Givanni Arrighi está em que este privilegia a evolução do capitalismo como sistema econômico, enquanto aquele destaca a evolução histórica das hegemonias mundiais.
(P.125) Na impossibilidade teórica e técnica de dar conta do conjunto dos fenômenos que produziram o século XX, optamos por alguns, cujo significado nos parece essencial para entender o significado político do século.
A escolha partiu de uma visão retrospectiva, que busca combinar com dois elementos determinantes – a construção da hegemonia norte-americana, sobrepujando a inglesa e obstruindo a alemã dentro do bloco capitalista, e a construção e o fracasso do bloco alternativo, liderado pela URSS. O pano de fundo é a evolução do capitalismo no século, da virada do século até a crise de 1929, passando por todas as consequências desta, desde a recessão até a recuperação e expansão do segundo pós-guerra até o ciclo longo e recessivo que se prolongou até o final do século.
A guerra de 1914 é o momento de virada no século e é o ponto de partida de uma série de fenômenos decisivos: o declínio inglês e a ascensão norte-americana; o bloqueio a ascensão alemã; a revolução russa; o nazismo e outros fenômenos militares; a guerra de 1939; a derrota da Alemanha e do Japão, seu bloqueio para se tornarem potências militares no segundo pós-guerra; a bomba de Hiroshima; os acordos de Yalta, a Guerra Fria.
(P.126) O século XX terminou por não ser nem o século do socialismo, nem o do capitalismo pura e simplesmente. Ele foi o século do enfrentamento mutuo, nas formas históricas que cada um assumiu. Desse ponto de vista, o século terminou com a vitória do capitalismo.
A derrota do socialismo soviético não favoreceu a superação das contradições internas do capitalismo. Ao contrário aprofundou-as, pois já não existe um sistema alternativo. A última década do século XX, que deveria ser de euforia para o capitalismo triunfante, foi na verdade uma década de prolongadas recessões econômicas, crises, guerras (Iraque, Iugoslávia, Chechênia, África) e catástrofes ambientais.
(P.127) Embora, haja renovações tecnológicas o capitalismo segue seu longo ciclo recessivo iniciado nos anos 1970. Isso acontece porque a desregulamentação econômica atraiu o grosso dos capitais para a especulação financeira, com as taxas de juros superando as taxas de lucro.
Assim, os capitais ficam girando na esfera financeira, contraindo em vez de alavancar as economias dos países, especialmente os endividados do sistema.
Por suas consequências negativas, o triunfo do capitalismo, não gerou a euforia que se anunciou na obra de Fukuyama O fim da história e o último homem, de 1989. O triunfo do capitalismo e de suas expressões, no entanto ainda não foi capaz de se estender para toda a humanidade. Nem se pode dizer que mais da metade da humanidade viva integrada à economia de mercado. A própria incapacidade do capitalismo de completar sua dominação, mesmo sem a competição de um sistema antagônico é evidente.
(P.128) Por outro lado, se o socialismo fracassou, as raízes desse fracasso não são alheias ao sucesso do capitalismo. Isto é, enquanto o socialismo surgiu e se manteve na periferia do mundo, em países de menor desenvolvimento, o capitalismo seguiu reproduzindo-se naqueles de maior nível de desenvolvimento.
Mais de dois séculos de capitalismo e da Revolução Francesa ainda não foram suficientes para pôr em prática os ideais de “liberdade, igualdade e fraternidade” e provavelmente estejamos cada vez mais longe de realizá-los. A liberdade é cada vez mais cerceada e trocada por segurança. O desenvolvimento econômico serve apenas para aumentar a concentração de renda e o precipício entre ricos e pobres. (P.129) O fim dos Estados de bem-estar social e dos Estados socialistas fez proliferar o egoísmo e não a fraternidade, a solidariedade é substituída pela gana do consumo.
A derrota política e ideológica do socialismo foi também a derrota dos valores morais e éticos.
Finalizando, nada indica que a humanidade esteja condenada a viver no capitalismo ao longo do século XXI ou que caminha necessariamente para o socialismo. O que o século mostrou é que a história é um processo em aberto, em que os homens não estão condenados e vivem em nenhum tipo de sociedade em particular. O século XX mostrou que as condições para a construção de uma sociedade socialista já existem. Foi primeiro século em que o capitalismo enfrentou um tipo de sociedade que pretende negá-lo e superá-lo. O desafio fica colocado para o século XXI.
Bibliografia:
SADER; Emir: “Século XX uma biografia não autorizada” – ed. Fundação Perseu Abramo. Pág 119-129

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