Como classificar o século
XX? Como o século do capitalismo norte-americano? Como o século das guerras?
Como o século da tecnologia? Para Emir Sader o século pode ser caracterizado
como a construção da hegemonia norte-americana, sobrepujando a Inglaterra,
derrotando a rival Alemanha dentro do bloco capitalista e ajudando no fracasso
do socialismo soviético.
Século XX: que século
foi esse?
(P.119) Visto se seu final,
foi, sem dúvida, o século do capitalismo norte-americano. O final do século XIX
viu o surgimento dos EUA como potência mundial e o século XX viu a sua
consolidação inquestionável. Da projeção na Primeira Guerra à afirmação na
Segunda, passando pela disputa com a URSS durante a Guerra Fria até sua
consolidação como única superpotência, a história do século XX poderia ser
contada como a história do capitalismo norte-americano. (...)
No entanto, o século
XX poderia também ser definido como o século das guerras. No período entre 1914
e 1991, mais homens foram mortos ou abandonados à morte por decisão humana como
nunca antes. Um cálculo dessas megamortes totaliza 187 milhões de pessoas. Por
isso, para Hobsbawm, o século XX foi “o século mais assassino de que temos
registro”.
(P.120) Ou se preferir, o
século XX pode ser caracterizado como o século da tecnologia, aquele em que a
modernização da vida, em todas as suas dimensões, assumiu um ritmo incomparável
com tudo o que se havia vivido. Levando em consideração que grande parte dessas
descobertas são provenientes do século anterior.
(P.121) Assim, o homem da
virada do século XIX para o XX podia, diferente de uma geração anterior, viajar
de trem, ouvir música em casa, falar por telefone, mandar mensagens pelo
telégrafo, fotografar, usar lâmpadas elétricas. Mudanças incomparavelmente
maiores do que assistimos na virada do século XX para o XXI. É muito mais
radicalmente novo falar por telefone do que avançar do telefone tradicional
para o celular. Maior é a novidade em andar de trem do que passar a andar de
trem bala.
Com todas essas
invenções, estavam dados os fundamentos para o tipo de vida que se considerou
patamar de bem-estar ao longo do século XX. A elas se somaram posteriormente o
avião, a TV e o computador.
Essas grandes
descobertas feitas no final do século XIX, foram generalizadas e consumidas,
mesmo que de forma desigual, por todo o século XX.
(P.122) O século XX foi o
século do predomínio norte-americano, que já no século XIX, com a guerra contra
a Espanha, já se projetava como uma grande força imperial, não só pela
demonstração de força, mas pela ambição de se apropriar de Cuba, Porto Rico e
das Filipinas, começando a constituir exatamente aquilo que o cubano José Martí
temia – um império desenhado a partir do controle de todo o novo continente, de
que a Doutrina Monroe foi a formulação ideológica. Comparando-se a Inglaterra
no século anterior.
(P.123) Quando o império
britânico começou a declinar, o processo de construção de uma hegemonia
alternativa deu-se em duas frentes – a norte-americana e a alemã. As guerras
iniciadas em 1914 e em 1939, respectivamente, definiram qual delas triunfaria.
Mas antes mesmo do
final da guerra de 1914, um novo fenômeno viria a agregar novos elementos de complexidade
àquela disputa hegemônica – a Revolução Russa. A entrada dos EUA e a saída da
Rússia da Primeira Guerra começou e desenhar o novo quadro de disputas estratégicas
que viriam a acontecer, só que agora não entre potências da mesma natureza
econômico-social e sim contra uma potência que reivindicava a ruptura com o
capitalismo e a construção de uma sociedade socialista.
Assim, o período de
hegemonia norte-americana incluíra, pela primeira vez na história, uma disputa
entre sistemas econômicos –sociais diferentes – o capitalismo e o socialismo –
disputa que terminará por marcar profundamente o século XX.
Se a afirmação
hegemônica dos EUA se deu ao longo das duas guerras mundiais, a partir do
término delas desenhou-se o novo quadro de enfrentamentos estratégicos, que
teve na polarização EUA/URSS o seu eixo.
Existem ainda outros
fenômenos que também marcaram a fisionomia do capitalismo como a crise de 1929,
o surgimento do capitalismo de Estado (Estado keynesiano), o nazismo, o
fascismo, as revoluções chinesas e cubana, entre outros.
(P.124) Se a hegemonia
inglesa do século XIX foi, a partir da derrota de Napoleão, uma hegemonia
relativamente linear ao longo de todo o período, o mesmo não pode ser dito da
hegemonia norte-americana. Esta pode ser dividida entre um período ascendente
até o final da Segunda Guerra; e o período da Guerra Fria, onde a predominância
norte-americana foi questionada de fora do capitalismo, pelo URSS.
Essa periodização, de
caráter político, se assenta num fenômeno histórico de maior proporção: o
desenvolvimento do processo de acumulação capitalista. A diferença entre o
“curto” século XX de Hobsbawm e o “longo” de Givanni Arrighi está em que este
privilegia a evolução do capitalismo como sistema econômico, enquanto aquele
destaca a evolução histórica das hegemonias mundiais.
(P.125) Na impossibilidade
teórica e técnica de dar conta do conjunto dos fenômenos que produziram o
século XX, optamos por alguns, cujo significado nos parece essencial para
entender o significado político do século.
A escolha partiu de
uma visão retrospectiva, que busca combinar com dois elementos determinantes –
a construção da hegemonia norte-americana, sobrepujando a inglesa e obstruindo
a alemã dentro do bloco capitalista, e a construção e o fracasso do bloco alternativo,
liderado pela URSS. O pano de fundo é a evolução do capitalismo no século, da
virada do século até a crise de 1929, passando por todas as consequências
desta, desde a recessão até a recuperação e expansão do segundo pós-guerra até
o ciclo longo e recessivo que se prolongou até o final do século.
A guerra de 1914 é o
momento de virada no século e é o ponto de partida de uma série de fenômenos
decisivos: o declínio inglês e a ascensão norte-americana; o bloqueio a
ascensão alemã; a revolução russa; o nazismo e outros fenômenos militares; a
guerra de 1939; a derrota da Alemanha e do Japão, seu bloqueio para se tornarem
potências militares no segundo pós-guerra; a bomba de Hiroshima; os acordos de
Yalta, a Guerra Fria.
(P.126) O século XX terminou
por não ser nem o século do socialismo, nem o do capitalismo pura e
simplesmente. Ele foi o século do enfrentamento mutuo, nas formas históricas
que cada um assumiu. Desse ponto de vista, o século terminou com a vitória do
capitalismo.
A derrota do
socialismo soviético não favoreceu a superação das contradições internas do
capitalismo. Ao contrário aprofundou-as, pois já não existe um sistema
alternativo. A última década do século XX, que deveria ser de euforia para o
capitalismo triunfante, foi na verdade uma década de prolongadas recessões
econômicas, crises, guerras (Iraque, Iugoslávia, Chechênia, África) e
catástrofes ambientais.
(P.127) Embora, haja
renovações tecnológicas o capitalismo segue seu longo ciclo recessivo iniciado
nos anos 1970. Isso acontece porque a desregulamentação econômica atraiu o
grosso dos capitais para a especulação financeira, com as taxas de juros
superando as taxas de lucro.
Assim, os capitais
ficam girando na esfera financeira, contraindo em vez de alavancar as economias
dos países, especialmente os endividados do sistema.
Por suas consequências
negativas, o triunfo do capitalismo, não gerou a euforia que se anunciou na
obra de Fukuyama O fim da história e o último homem, de 1989. O
triunfo do capitalismo e de suas expressões, no entanto ainda não foi capaz de
se estender para toda a humanidade. Nem se pode dizer que mais da metade da
humanidade viva integrada à economia de mercado. A própria incapacidade do
capitalismo de completar sua dominação, mesmo sem a competição de um sistema
antagônico é evidente.
(P.128) Por outro lado, se o
socialismo fracassou, as raízes desse fracasso não são alheias ao sucesso do
capitalismo. Isto é, enquanto o socialismo surgiu e se manteve na periferia do
mundo, em países de menor desenvolvimento, o capitalismo seguiu reproduzindo-se
naqueles de maior nível de desenvolvimento.
Mais de dois séculos
de capitalismo e da Revolução Francesa ainda não foram suficientes para pôr em
prática os ideais de “liberdade, igualdade e fraternidade” e provavelmente
estejamos cada vez mais longe de realizá-los. A liberdade é cada vez mais
cerceada e trocada por segurança. O desenvolvimento econômico serve apenas para
aumentar a concentração de renda e o precipício entre ricos e pobres. (P.129) O
fim dos Estados de bem-estar social e dos Estados socialistas fez proliferar o
egoísmo e não a fraternidade, a solidariedade é substituída pela gana do
consumo.
A derrota política e
ideológica do socialismo foi também a derrota dos valores morais e éticos.
Finalizando, nada
indica que a humanidade esteja condenada a viver no capitalismo ao longo do
século XXI ou que caminha necessariamente para o socialismo. O que o século
mostrou é que a história é um processo em aberto, em que os homens não estão
condenados e vivem em nenhum tipo de sociedade em particular. O século XX
mostrou que as condições para a construção de uma sociedade socialista já
existem. Foi primeiro século em que o capitalismo enfrentou um tipo de
sociedade que pretende negá-lo e superá-lo. O desafio fica colocado para o
século XXI.
Bibliografia:
SADER; Emir:
“Século XX uma biografia não autorizada” – ed. Fundação Perseu Abramo.
Pág 119-129
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