Nona Carta. Sobre o governo.
Nem sempre subsistiu essa feliz mistura no governo da Inglaterra, esse acordo entre a Câmara dos Comuns, a dos Lordes e o rei. Durante muito tempo a Inglaterra foi escrava: romanos, saxões, dinamarqueses, franceses a escravizaram. Guilherme, o Conquistador, governou-a com cetro de ferro, dispondo dos bens e da vida de seus novos súditos como um monarca do Oriente. Proibiu, sob pena de morte, que algum inglês ousasse ter um fogo ou uma luz em casa depois das oito horas da noite. Tentava impedir assim suas assembléias noturnas? Ou quis, com uma proibição esquisita, experimentar até onde vai o poder de um homem sobre os outros?(...)
É verdade que antes de Guilherme, o Conquistador, os ingleses tiveram parlamentos. Vangloriam-se disso, como se essas assembléias, chamadas então parlamento, compostas de tiranos eclesiásticos e de saqueadores chamados barões, tivessem sido guardiãs da liberdade e da felicidade públicas.
Os bárbaros, que, partindo das margens do mar Báltico, se estabeleciam no resto da Europa, trouxeram consigo o costume desses estados ou parlamentos, a cujo respeito tem sido muito estardalhaço e que são tão pouco conhecidos. Nessa época, os reis não eram déspotas, é verdade, mas os povos gemiam ainda mais numa servidão miserável. Os chefes desses selvagens, devastadores da França, da Itália, da Espanha e da Inglaterra, fizeram-se monarcas. Seus capitães partilharam entre si as terras dos vencidos, dando origem aos margraves, aos lordes, aos barões, subtiranos que freqüentemente disputam com seu rei os despojos dos povos. Eram aves de rapina, combatendo contra uma águia para sugar o sangue das pombas. Cada povo tinha cem tiranos no lugar de um senhor. Logo os padres entraram no jogo. Em todos os tempos, a sina dos gauleses, dos germanos, dos insulares da Inglaterra submeteu-os ao governo dos druidas diziam-se mediadores entre a divindade e os homens; faziam leis, excomungavam e condenavam à morte. Os bispos os sucederam pouco a pouco na autoridade temporal do governo gótico e vândalo. Os papas os encabeçaram e com encíclicas, bulas e monges fizeram os reis tremer, depondo-os, assassinando-os e roubando todo o dinheiro da Europa. o imbecil Inis, um dos tiranos da heptarquia da Inglaterra, numa peregrinação a Roma, foi o primeiro a submeter-se ao pagamento da “esmola de São Pedro” (mais ou menos equivalente a um escudo da moeda francesa) por cada casa de seu território. Logo toda a ilha seguiu esse exemplo. Pouco a pouco a Inglaterra tornou-se uma província do papa. O santo padre enviava periodicamente legados que recolhiam impostos exorbitantes. João sem Terra acabou fazendo uma cessão de seu reino à Sua Santidade, que o excomungara. Os barões, que nada receberam, expulsaram o miserável rei, colocando em seu lugar Luís VIII, pai de São Luís, rei da França. Mas desgostaram-se logo com o recém-chegado, fazendo-o cruzar novamente o mar.
Enquanto barões, bispos e papas dilaceravam a Inglaterra, todos querendo dirigir o povo, uma parte dos homens, mais numerosa, mais virtuosa e, consequentemente, mais respeitável, composta de homens estudiosos das ciências e das leis, de negociantes e artesãos, enfim, todos os que não eram tiranos, em suma, o povo, era encarada pelos primeiros como animais superiores ao homem. foi preciso, portanto que os Comuns também tomassem parte do governo. Eram vilões, cujo trabalho e cujo sangue pertenciam aos seus senhores, chamados nobres. A maioria dos homens era na Europa aquilo que muitos ainda são em certos lugares do norte: servos de um senhor, espécie de gado que se compra e se vende com a terra. Foram precisos muitos séculos para praticar-se justiça pela humanidade, para sentir-se como era horrível que a maioria semeasse e a minoria colhesse. Não é uma felicidade para o gênero humano que a autoridade desses bandidos tenha sido extinta na França pela potência legítima do rei, e na Inglaterra, pela do rei e do povo?
Felizmente, as sacudidas que as querelas entre os reis e os grandes davam nos impérios afrouxaram os ferros das nações. Na Inglaterra, a liberdade nasceu das querelas entre os tiranos. Os barões forçaram João sem Terra e Henrique III a promulgar essa famosa carta, cujo fim principal era, na verdade, colocar os reis sob a dependência dos lordes, mas que favorecia boa parte da nação a fim de que esta se pusesse ao lado de seus pretensos protetores. Essa Magna Carta, vista como origem sagrada das liberdades inglesas, mostra bem quão pouco a liberdade era conhecida. Só o título já prova que o rei acreditava-se absoluto de direito, e que os barões e o clero só o forçaram a afrouxar esse direito porque eram mais fortes do que ele.
Eis o início da Magna Carta: “Por nossa livre vontade atribuímos os seguintes privilégios aos arcebispos, bispos, abades, priores e barões de nosso reino, etc.”
Nos artigos da Carta não há uma palavra referente à Câmara dos Comuns, prova de que ainda não existia, ou de que existia sem poder. São especificados os homens livres da Inglaterra: triste demonstração de que havia aqueles que não o eram. Vê-se pelo artigo 32 que esses supostos homens livres deviam serviços aos seus senhores. A liberdade conservava muito da escravidão.
Pelo artigo 21, o rei ordena que seus oficiais que não poderão daí em diante tomar à força cavalos e carroças dos homens livres, a menos que paguem. Para o povo, esse regulamento pareceu uma verdadeira liberdade porque afastava uma tirania maior.
Henrique VII, usurpador feliz e grande político, que fingia apreciar os barões, mas que os odiava e temia, lembrou-se de promover a alienação de suas terras. Com isto, os vilões, que em seguida adquiriram bens com seu trabalho, compraram os castelos dos ilustres pares, arruinados por suas loucuras. Pouco a pouco todas as terras mudaram de dono.
A Câmara dos Comuns foi-se tornando cada vez mais forte. As famílias dos antigos pares extinguiram-se com o tempo, e como na Inglaterra só os pares são nobres, segundo o rigor da lei, não haveria mais nobreza no país se os reis tivessem criado novos barões de vez em quando, e conservando a ordem dos pares, muito temidos antes, para opô-los à dos comuns, muito temíveis agora.
Todos os novos pares compõem a Câmara Alta, recebem seu título do rei, e mais nada. Quase nenhum possui a terra cujo nome carrega. Um é duque de Dorset, mas não tem um palmo de terra em Dorsetshire; outro é conde de uma aldeia que mal sabe onde está situada. Têm poder no Parlamento e não alhures.
Aqui não ouvireis falar em alta, média e baixa justiça, nem do direito de caçar nas terras de um cidadão, que não pode dar um tiro sequer em seu próprio campo.
Porque nobre ou padre, um homem não está isento de pagar certas taxas. Todos os impostos são regulamentados pela Câmara dos Comuns, segunda por seu grau, mas primeira por seu critério.
Os senhores e os bispos podem rejeitar o projeto de lei dos Comuns no tocante às taxas, mas não podem alterá-lo em nada – devem aprová-lo ou rejeitá-lo sem restrição. Quando o projeto de lei é confirmado pelos lordes e aprovado pelo rei, então todo mundo paga. Cada um dá, não segundo sua qualidade (o que seria absurdo), mas segundo sua renda. Não há tarifa ou imposto per capita, mas uma taxa real sobre as terras. Foram todas “avaliadas” sob Guilherme III e postas abaixo de seu preço.
A taxa permanece sempre a mesma, embora as rendas fundiárias tenham aumentado; desse modo ninguém é pisoteado nem se queixa. O camponês não tem os pés feridos pelos tamancos, come pão branco, veste-se bem, não teme aumentar sua criação nem cobrir seu teto com telhas com medo que lhe aumentem os impostos um ano depois. Há aqui muitos camponeses com dois mil francos em bens e que não desdenham continuar cultivando a terra que os enriqueceu e onde vivem livres (p. 20-21).
Bibliografia:VOLTAIRE. Cartas Inglesas. In: Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1973, volume XXXIII.
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