Neste capítulo Andrews trata da democracia racial
em São Paulo, a organização e fundação de clubes negros.
Negros e brancos em São Paulo
(1888-1988).
(Pág. 197) Cap. 5:
Vivendo em uma Democracia racial, 1900-1940.
Os dois capítulos
anteriores concentram-se nas consequências mais visíveis do desenvolvimento
econômico de São Paulo. No campo foi a transformação da força de trabalho
escrava em livre e, nas cidades, a criação de um proletariado industrial. Mas
ao mesmo tempo em que brasileiros e europeus estavam indo trabalhar nas
fazendas e fábricas de São Paulo, muitos estavam lutando pela ascensão social
para a nascente classe média. Chance proporcionada pelo crescimento econômico
da época. (...)
(Pág.
198) Essa pequena, porém crescente classe média da década de 1920
estava cada vez mais se afirmando na política da República. Em São Paulo a
classe média era composta majoritariamente de indivíduos brancos. Durante o
séc. XIX, pardos e negros compuseram uma proporção substancial de artesãos,
operários especializados e proprietários de pequenos negócios. Alguns
ascenderam até mesmo a burocracia governamental, empregos do colarinho branco e
profissões liberais. Entretanto, tais oportunidades para os negros sempre foram
mais restritas em São Paulo do que no Rio de Janeiro ou no Nordeste.
Os afro-brasileiros
estavam situados bem atrás da população branca em todas as áreas, não tinham
acesso à educação e já eram marginalizados em empregos braçais, com isso
ficavam atrás na disputa pela ascensão social.
(Pág. 199) Proporcionalmente, os
negros eram minoria em todos os setores ligados à classe média como profissões
liberais e proprietários de empresas agrícolas, industriais, comerciais ou de
serviços. O censo de 1940 sugere que a única área de emprego da classe média em
que os afro-brasileiros se aproximavam com alguma paridade era o setor público.
Mas esses empregos estavam longe de ter um status de classe média, pois
incluíam varredores de rua, trabalhadores da construção e serviços de
escritórios como mensageiros e serventes.
(Pág. 200) E as barreiras
vistas no setor privado podiam ser vistas no setor público, como no caso
relatado no jornal O Combate de 1915, onde um professor
altamente qualificado foi impedido de assumir o cargo em uma escola pública de
Itapetininga por causa de sua raça.
Apesar disso, quando
comparado com as oportunidades de emprego no setor privado de São Paulo, o
setor público constituía a rota mais propícia para os afro-brasileiros
desejosos em escapar do trabalho braçal e ascender a cargos de colarinho
branco.
(Pág. 201) Para se qualificar
alguém como membro da classe média negra “não precisava ser doutor. Bastava ser
funcionário público ou ter um emprego de caráter fixo”.
(Pág. 203) Democracia
racial.
O conceito de
democracia racial estabelece que o Brasil é uma terra livre de impedimentos
legais e institucionais para a igualdade racial, isento de preconceito e discriminação.
A nação oferece a todos os seus cidadãos, seja a cor, uma igualdade de
oportunidades em todas as áreas da vida pública: educação, moradia, política,
empregos. Então os afro-brasileiros desfrutam das mesmas oportunidades e
liberdades, para competir com seus concidadãos na luta por bens públicos e
privados.
No decorrer do séc.
XIX, as restrições raciais datadas do domínio colonial português eram
explicitamente declaradas ilegais ou simplesmente caíam em desuso, permitindo
que uma proporção considerável de pretos e pardos experimentassem a mobilidade
social. Os observadores estrangeiros ficavam impressionados com a aparente
liberdade dos negros para ascendem até o ponto onde seus talentos os levassem.
(Pág. 204) Essas observações
podem ter exagerado as oportunidades de progresso realmente disponíveis aos
negros no Brasil do séc. XIX. Mas sugerem que, durante o Impérios, o Brasil era
uma sociedade com mais igualdade racial do que os EUA.
Entretanto, nas
décadas de 1870 e 1880, o Brasil era a única nação independente nas Américas que
ainda mantinha a escravidão. Os senhores brasileiros se justificavam declarando
que seus escravos eram muito bem tratados, e que a escravidão em seu país era
relativamente branda e leve. (Pág. 205) Declarações rejeitadas
por abolicionistas e observadores estrangeiros.
Apesar da óbvia
contradição da realidade, o mito da escravidão brasileira benevolente foi
amplamente aceita na época, e mostrou-se bastante persistente nos anos subsequentes.
A questão é: porque ela persistiu após a escravidão ser abolida? Parte da razão
era simples inércia ideológica: a tendência de um mito social estabelecido para
permanecer vigente, e como não foi contestada após a abolição acabou se
reforçando.
(Pág. 206) Os ex-senhores de
escravos e os brancos brasileiros em geral, tinham de sustentar que os danos e
as injustiças da escravidão embora objetáveis, não eram tão ruins quanto
poderiam ter sido.
(Pág. 207) Era mais seguro se
concentrar n futuro do que no passado das relações entre negros e brancos no
Brasil; e se fosse para olhar para o passado era melhor se concentrar não na
experiência da escravidão, mas sim na relativa abertura da sociedade do séc.
XIX aos pardos e pretos livres. Os expoentes da democracia racial declaravam
que, agora que os afro-brasileiros se libertaram da escravidão eles podem
desfrutar de todo progresso do séc. XX, assim como seus ancestrais libertos
desfrutaram no séc. XIX.
Foi assim que o
Brasil -o último país cristão do mundo a abolir a escravidão- tornou-se o
primeiro a se proclamar uma democracia racial: virtualmente acabando com todas
as tensões raciais. Desde seu início a democracia racial esteve intimamente
associada ao ideal da democracia política e supostamente fazia parte da ordem
política liberal e progressista.
(Pág. 208) Quando o
liberalismo foi importado para o Brasil, ele foi apropriado pelas elites rurais
- o análogo brasileiro à nobreza europeia- que utilizaram suas denúncias de
privilégio e monopólio para justificar a remoção do controle colonial português
sobre a política em economia brasileira. (Pág. 209) Os
aspectos libertários civis do liberalismo não despertaram interesse na elite
que considerava a grande maioria da população brasileira incapaz de se
expressar dentro do Estado recém-independente. Incapazes de se livrar dos
componentes libertários do liberalismo, as elites buscaram formulas ideológicas
que permitissem a exclusão da população na política e na economia ao mesmo
tempo em que formalmente conservassem os princípios da cidadania e da justiça.
Esta tentativa de
acomodação do liberalismo no Brasil produziu um legado de equívocos, em que a
hierarquia e o privilégio eram defendidos em nome da democracia e da igualdade.
O conceito de democracia racial é parte integral desses equívocos.
(Pág. 210) Estava claro para
todos que os negros continuavam a ocupar uma posição rebaixada e subordinada na
sociedade brasileira. A doutrina da democracia racial isentava a política do
Estado ou o racismo informal de qualquer responsabilidade pela situação da
população negra, até mesmo responsabilizando-os diretamente por sua condição.
Se os negros fracassassem em sua ascensão social a culpa era totalmente deles.
A pobreza e a marginalização dos negros era a confirmação, não do fracasso da
democracia racial, mas sim a preguiça, ignorância e incapacidade dos negros.
Durante essa época
esse fenômeno era explicado por diversas teorias como o darwinismo social e o
racismo científico. Assim, qualquer afro-brasileiro que questionasse a noção de
democracia racial, corria o risco de ser confrontado com análises de sua
deficiência intelectual embasada no grupo racial ao qual pertence.
(Pág. 211) Se os
afro-brasileiros aceitavam o Brasil como uma terra de igualdade, então o seu
fracasso nessa terra devia ser atribuído apenas às suas próprias deficiências.
E embora essas deficiências fossem prontamente explicáveis pela escravidão,
sempre haveria a suspeita de que o fracasso é mais genético do que
histórico.
(Pág. 212) A única saída
para os negros afligidos por esse medo era abraçar a tese do branqueamento. Os
racistas científicos doutrinários consideravam a mistura racial como um
processo regressivo, em que o ancestral racial europeu era enfraquecido. Alguns
intelectuais criticavam a miscigenação por esse motivo, outros a apoiavam por
acreditar que o sangue branco era mais forte e que com o tempo eliminaria as
características africanas, produzindo um branqueamento final no Brasil.
(Pág. 213) Aspirando se unir à
sociedade brasileira e considerando o branqueamento a melhor maneira de se
atingir esse objetivo, alguns membros da classe média afrodescendente
endossaram a tese do branqueamento e substituição da herança racial africana
pela europeia.
Entretanto, nem todos
os observadores negros estavam convencidos de que o branqueamento e a
democracia racial brasileira era dispositivos vantajosos para as pessoas de
cor.
(Pág. 214) A brutalidade nas
relações raciais nos EUA, gerou a necessidade dos afro-americanos se defenderem
das perseguições dos norte-americanos brancos gerando um tipo de consciência
afro-americana invejada pelos afro-brasileiros. Que chegaram até a especular
que o “preconceito descarado seja um estímulo para o preparo do negro”.
(Pág. 217) Na década de 1920, um
número crescente de afro-brasileiros não estava disposto a aceitar a patente
discrepância entre a imagem e o fato. Os direitos civis e a legalidade eram
rotineiramente violados. Em 1918, surgiu O Alfinete, primeiro
jornal negro a dizer que a democracia racial não passa de ficção. Durante a
década seguinte a maioria dos jornais negros abraçou essa opinião.
Para a elite negra a
democracia racial estava morta. (Pág. 218) Ou melhor, o mito da
democracia racial estava morto. O desejo da democracia racial
estava muito vivo: a esperança de que, através da ação política, o Brasil
pudesse ser realmente um país igual para todos. No decorrer da década de 1920,
os afro-brasileiros começaram a trabalhar para transformar esse sonho em
realidade.
Conseguindo se
organizar.
A história da vida
associativa dos negros no Brasil é extremamente rica e remonta ao período
colonial. Mesmo quando escravos, os africanos e os afro-brasileiros encontraram
maneiras de se reunir em associações. Todas tinham como objetivo satisfazer as
necessidades culturais, religiosas, econômicas e humanas de um povo que vivia e
trabalhava sob condições de exploração extrema. A abolição não resolveu nenhuma
dessas necessidades e criou novas.
(Pág. 219) Estas organizações
variavam em seu caráter e organização, dependendo da origem de classe e das
aspirações sociais de seus membros. Algumas eram agregações informais de negros
pobres da classe operária que se reuniam regularmente para tocar música, dançar
e conversar. Desses encontros originaram-se os grupos de carnaval.
(Pág. 220) Os afro-brasileiros
que aspiravam a classe média achavam que não seriam bem vistos se pertencessem
a essas organizações populares. E os afro-brasileiros que desejavam se manter à
parte do povo negro criaram seus próprios clubes sociais. Como o Kosmos, o
Elite Club, o Smart Club etc. Os próprios nomes de suas organizações indicam
como eles se enxergavam, ou desejavam se enxergar. Mas ao mesmo tempo era um
grupo excluído da sociedade, rejeitando seus inferiores sociais e sendo
rejeitados por seus pares brancos.
(Pág. 222) Os clubes atléticos
dos brancos excluíam os pretos e os pardos. E estes por sua vez responderam
criando seus próprios clubes, vários conseguiram considerável renome pela
qualidade de seu futebol.
Com exceção das
irmandades religiosas, todas as organizações foram criadas no intuito de trazer
lazer e diversão. Embora tenham surgido como uma reação a segregação racial
eles não tinham propósito de combater essa discriminação.
(Pág. 223) Em todo o Brasil, a
década de 1920 testemunhou uma profunda sensação de alienação pública da
República. À medida que as classes média e operária urbanas cresceram e se
expandiram no Sul e no sudeste, o descontentamento com a República também
cresceu.
(Pág. 224) Os primeiros anos das
República testemunharam vários levantes violentos por parte dos brasileiros
pobres e membros da classe operária que se opunham às políticas do Estado
dominado por fazendeiros.
(Pág. 225) Aos poucos a
insatisfação chegou às classes médias e altas, que criaram em 1926 o Partido
Democrático, primeira oposição eleitoral ao PRP (Partido Republicano Paulista)
desde que este chegou ao poder em 1890.
Os negros faziam
parte desta agitação política, afinal a República os havia tratado muito mal.
(Pág. 226) Quando a resistência
à República ganhou força em 1920, correntes similares também começaram a se
movimentar na comunidade negra. Mas foi aplicado o mesmo padrão dos clubes. Os
homens negros eram proibidos de ingressar no corpo de oficiais, e por isso não
puderam participar do tenentismo. O movimento operário de São Paulo permaneceu
dominado por líderes imigrantes, e s membros da classe média da elite de ambos
os partidos - Republicano e Democrático- não tinham nenhum interesse em ver os
afro-brasileiros participando ativamente nos partidos políticos.
(Pág. 227) Em vista disso,
quando os negros procuraram maneiras de se associar à crescente oposição à
República, começaram a pensar em termos de formar sua própria organização
política afro-brasileira.
(Pág. 228) A frente
negra brasileira.
A república foi
derrubada; o domínio dos fazendeiros estava terminado. Mas o que iria
substituí-lo? Uma agitação de interesses políticos e econômicos conflitantes
lutou acirradamente para definir a nova ordem política, recorrendo em mais de
uma ocasião à violência armada. No decorrer da década, estas lutas tornaram-se
suficientemente intensas para que em 1937, o presidente Vargas os usasse como
justificativa para fechar o processo político, abolindo os partidos políticos e
impondo a ditadura do Estado Novo de inspiração fascista.
(Pág. 229) Mas em 1930 tudo isso
ainda estava por acontecer, e aqueles que estavam sendo mal servidos pela República
e por sua falsa democracia nada tinham a fazer senão aplaudir a “revolução”.
Muitos afro-brasileiros achavam ter uma razão particular para apoiá-la. Vargas
não desapontou seus partidários negros, ao criar o Ministério do Trabalho
restringiu o trabalho estrangeiro o que soou como música aos ouvidos da
população negra de São Paulo.
(Pág. 230) Um dos mais ativos
destaques da vida cívica negra em São Paulo durante a década de 1920, foi
Arlindo Veiga dos Santos, migrante da Bahia que trabalhava meio período como
secretário na Faculdade de Direito e jornalista em tempo parcial. Em setembro
de 1931, Santos convocou uma série de encontros para discutir a criação de uma
organização negra. E em 12 de outubro a Frente Negra Brasileira foi
oficialmente inaugurada.
(Pág. 231) A reação do público
ao estabelecimento da Frente superou qualquer expectativa de seus
organizadores. A organização se expandiu rapidamente por todo o Estado, Minas
Gerais, Espírito Santo, Bahia e no Rio Grande do Sul.
(Pág. 232) A frente subvencionou
cursos de alfabetização e vocacionais para adultos, e montou uma escolar
elementar. Criou uma clínica médica e odontológica de baixo custo, além de
oferecer advogados. Faziam empréstimos para comprar casa e tirar os negros dos
porões da cidade.
(Pág. 233) Estes programas
atraíram uma quantidade substancial de membros, mas fosse qual fosse o seu
número, os membros da frente eram muito poucos para exercer algum impacto sobre
a política eleitoral do Estado. Não elegendo nenhum candidato em seus sete anos
de existência.
(Pág. 234) Apesar de suas
derrotas eleitorais a Frente obteve algum sucesso na pressão em questões
envolvendo a discriminação racial.
(Pág.
235) Aos poucos a classe média percebeu nos imigrantes uma ameaça. Uma
orientação xenofóbica, anti-imigrantes com práticas emprestadas do fascismo.
(Pág. 236) Se as elites e a
classe média branca sucumbiram aos sentimentos anti-imigrantes, não surpreende
nada encontrar afro-brasileiros fazendo o mesmo. Mais que qualquer outro grupo
em São Paulo, foram eles que suportaram a violência da imigração e que foram
repudiados enquanto o Estado era “europeizado”.
(Pág. 238) Devido a essa raiva
cada vez maior contra os imigrantes, a Frente Negra que em seu estatuto previa
ser uma organização rigorosamente brasileira, apoiou o fechamento do Brasil a
qualquer interferência externa.
Os paralelos entre a
orientação anti-imigrante da Frente e as do movimento integralista são
impressionantes: ambos menosprezavam a democracia liberal e a filosofia
estrangeira, além de admirar o fascismo europeu. Em um editorial de 1933
Arlindo Veiga Santos parabeniza Adolf Hitler por ter livrado a Alemanha dos
judeus.
(Pág. 239) A Frente chegou a
adotar como o lema integralista “pela família, pelo país e por Deus”
modificando um pouco e acrescentando pela “raça”.
No decorrer da década
de 1930 a Frente progressivamente retirou o apoio aos moderados e à esquerda da
comunidade Negra, o que levou a criação de um grupo de dissidentes na capital a
criar o rival Club Negro de Cultura Social e uma pequena Frente Negra
Socialista. Santos chamou esses dissidentes de Judas da raça e mandou sua
milícia destruir o escritório deles.
(Pág. 240) Em dezembro de 1937, Getúlio
Vargas deu à Frente o seu golpe de misericórdia, proibindo todos os partidos
políticos. A Frente ainda tentou barganhar oferecendo apoio a ditadura. As
organizações pequenas demais para ameaçar o governo tinham permissão para
morrer de morte natural e foi o que aconteceu com a Frente Negra Brasileira em
maio de 1938.
É fácil culpar a
Frente por sua derrota: seu autoritarismo, seu chauvinismo de extrema-direita,
seu fracasso em organizar seus adeptos e se tornar uma força política real.
(Pág. 241) Mas o fato é de que a
frente foi vítima dos mesmos conflitos que conturbaram o sistema político mais
amplo. Os negros e brancos da classe média de São Paulo mostraram-se igualmente
vulneráveis à sedução do nacionalismo e do autoritarismo político.
Bibliografia:
ANDREWS;
George: “Negros e brancos em São Paulo”. Tradução Magda Lope,
Bauru, SP: EDUSC, 1998. Pág 197-241.
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