segunda-feira, 11 de julho de 2011

George Duby e Robert Mandrou: História da civilização Francesa



Ótima análise sobre as transformações ocorridas na baixa Idade Média. O desprendimento da terra, o surgimento dos mercadores, das feiras e dos burgos
3. O século de grandes progressos: 1070-1180.
B. Viagens, comércio e moeda.
Para dizer a verdade, a maneira de viver não foi, de imediato, tão radicalmente transformada. Mesmo para a massa de camponeses, podemos dizer que não houve mudança, com exceção de uma única, e esta, diga-se, essencial: os campônios não têm mais fome. De um ano para outro, dependendo das alterações climáticas, a produção de alimentos sofria notáveis variações; entretanto, desde 1050, aproximadamente, não ocorreram mais as fomes terríveis que periodicamente haviam desolado a alta Idade Média. Desde então, e durante muito tempo, os camponeses franceses gozaram desta felicidade fundamental: a segurança alimentar.(...)
Em contrapartida, no mundo dos senhores, clérigos ou laicos, o ritmo de vida cotidiana sofreu alterações mais rápidas e mais visíveis. Os ricos sempre haviam comido tanto quanto queriam, mas, haviam se mantido muito presos à terra. Agora eles podiam se desprender. Em primeiro lugar, a abundância dos lucros senhoriais determina que cada casa nobre expanda o grupo social essencial que então se chamava a “corte”, isto é, a tropa de comensais e de agregados de que todo homem bem-nascido deve se cercar. Os empregados domésticos, mais numerosos, tendem a se especializar; entre eles se destacam alguns chefes de serviço. Os hóspedes de qualidade, sobretudo, são cada vez mais numerosos, dado que no século XII é muito mais fácil deslocar-se e ir visitar os amigos. Efetivamente o progresso material permitiu que os homens se deslocassem muito mais. A viagem era, então, o único meio de escapar ao atolamento rural, à pesada promiscuidade familiar, de alargar as experiências, de conhecer-se. Por isso, a despeito dos perigos, das fadigas, da lentidão dos caminhos, as viagens representam o mais excitante e o mais necessário dos divertimentos. Esta é, pois, o tempo dos viajantes, que caminham solitários ou acompanhados. São estudiosos em busca de novos livros ou novos ensinamentos; monges que, malgrado a obrigação do claustro e para grande escândalo dos reformadores, estão sempre à espreita de qualquer pretexto para respirar o ar livre dos caminhos; peregrinos, sobretudo.
Com as novas facilidades para viajar, a visita aos santuários célebres tornou-se decididamente – em finais do século XI – o mais louvável dos atos de devoção, considerado o mais eficaz para se alcançar o perdão e a benevolência dos santos. Ricos e pobres, sem cuidar das distâncias, contando com a hospitalidade das abadias, com a caridade dos que vivem à beira destes caminhos, lançam-se por meses e anos em itinerários complexos, vagando de modo a não deixar de lado nenhuma relíquia, mas tendendo, o mais frequentemente, para um dos três pontos altos da cristandade: Roma, Santiago de Compostela ou Jerusalém. Deste modo, o aumento do número dos que viajam constitui um aspecto essencial da grande expansão do século XII, aspecto que, talvez, mais do que os demais, surpreendeu os contemporâneos.
A animação dos caminhos desperta, também, as trocas. Com a abastança decorrente do progresso agrícola, os cavaleiros e camponeses têm agora menos dificuldades para satisfazer seu profundo prazer com a aparência, com os ornamentos, estes objetos estrangeiros, diferentes – e é isto que lhes dá preço – do habitual, do doméstico, do rústico. É ainda, e por muito tempo, o comércio de alto luxo: circulam apenas os gêneros de grande valor, especiarias, tecidos suntuosos; mas a clientela é menos restrita, seus gostos mais variados, suas posses mais amplas e, por conseguinte, o movimento é mais intenso. Em seu conjunto, todavia, a Europa Ocidental – com a integração progressiva das comunidades marítimas da Escandinávia e das povoações eslavas semi-selvagens da grande planície nórdica com a cristandade latina; com o estabelecimento de relações comerciais mais intensas com o Islã, desde as incursões da Espanha ao sul da península italiana, e com Bizâncio, a partir do Adriático; e, ainda, fato decisivo, com a reconquista militar das ilhas do Mar Tirreno e da Sicília, que estavam sob o domínio dos muçulmanos, reconquista esta que tornou menos arriscada a circulação dos cristãos entre as duas bacias do Mediterrâneo – pouco a pouco sai do isolamento e da estagnação. Através do território francês, passa a ter lugar um sistema de circulação mercantil, ainda embrionário, que se apoia em três polos.
O primeiro deles, entre a Flandres marítima, o vale do Oise e o baixo Sena, funciona como um centro de fabricação desses tecidos de boa lã de cor brilhante que têm nos nobres seus maiores compradores e, ao mesmo tempo, como um importante porto. Para aí confluem, através da cabotagem fluvial e marítima, o sal da costa Atlântica, o vinho do Sena e do Loire para serem exportados para as Ilhas Britânicas ou para as costas do Mar do Norte e do Báltico. A seguir vem a Catalunha, limiar da Espanha infiel, em que os traficantes cristãos trocam armas e escravos por produtos preciosos do artesanato moçárabe.
O último ponto de atração é a Itália, de onde os marinheiros, antigamente por Veneza e Amalfi, hoje também por Piza e por Gênova, trazem os produtos do Oriente. Estes três polos se ligam através dos campos franceses por caminhos fluviais e por ramificações cada vez mais percorridas pelas mercadorias.
De fato, entre o primeiro terço do século XI e por volta de 1075, se viu aparecer e se difundir um novo tipo social: o homem que não trabalha a terra e que, entretanto, não é senhor, nem mendigo, nem bandido, mas que, apesar de tudo, ganha a sua vida: o mercador profissional. Aventureiro, sempre em marcha, negociante desta época não espera os seus fregueses numa loja: ele os visita, exibe o seu estoque nos castelos onde estão reunidos os vassalos para o Conselho, nos umbrais das igrejas para os peregrinos, nas grandes festas a que comparecem os nobres e os força a comprar. Temos aí uma outra grande novidade: antigamente, o rico enviava seus servidores muito longe em busca de objetos exóticos; aprovisionar-se era uma empresa que se planejava antecipadamente e que continuava sendo arriscada. Agora, ao contrário, seus desejos são antecipados e atiçados pelo mercador itinerante; tentado para adquirir estes objetos que lhe são apresentados, ele pesca, na sua reserva, metais preciosos que antes não sabia como usar, salvo como jóias grosseiras. Deste modo, pela instituição de novas relações entre o comprador e o fornecedor, foram mobilizados, no decorrer do século XI, os tesouros das igrejas e das câmaras senhoriais; novamente se puseram a circular os metais preciosos de que o Ocidente não se havia desfeito inteiramente, mas que se havia coagulado na Alta Idade Média pela paralisação dos circuitos do comércio. No século XII, a moeda é, pois, mais abundante. Peças novas foram cunhadas com a prata dos copos, dos braceletes e dos paramentos do altar; ademais, o dinheiro não é o único instrumento monetário; utiliza-se, também, a pimenta ensacada, ouro em palhetas. O dinheiro circula, sobretudo, muito mais rápido. Mais comuns, as moedas têm também menos valor: nos últimos anos do século XI tem início uma alta dos preços dos alimentos, alta impossível de avaliar, mas que prosseguiu regularmente. Os homens começam a se aperceber de que as moedas saídas das oficinas monetárias - oficinas então tão numerosas, pois, em tempos de extremo desenvolvimento econômico, era necessário que houvesse uma junto a cada mercado um pouco mais movimentado - não são todas idênticas. Nova noção, a do curso das moedas; novo ofício, o de cambista – aquele que pesa, maneja, cerceador também, prestamista, enfim, de dinheiro.
Errante, portanto, o mercador do século XII transporta consigo nas costas, ou mais frequentemente no lombo das bestas de carga, os gêneros que possui – às vezes para muito longe, como aqueles italianos protegidos do papa que, desde o reinado de Felipe I, sofreram na região parisiense as exações reais. Coberto com o pó da viagem, ele é, como o peregrino, um “poeirento” – e é assim que os mercadores então eram chamados – um “forasteiro”, um desconhecido. O mercador torna-se objeto de desconfiança e, por conseguinte, objeto de escândalo também, porque ele se enriquece sem esforço visível porque ele rapa a moeda, porque, ao contrário do que determinam os preceitos de caridade, ele revende aos seus irmãos, com lucro, aquilo de que necessitam e não pode, por isso, ser amigo de Deus. Mas o mercador torna-se também objeto de cobiça, pois seus alforjes estão repletos de objetos extraordinários e de mais dinheiro do que jamais se viu reunido no campo. Não obstante, a partir do ano mil, pouco a pouco, se abriu espaço para os homens de passagem, viajantes ou negociantes. Inicialmente os caminhos foram um pouco melhorados.
A maior parte das antigas pontes da França teve seus atuais fundamentos lançados no século XI e a sua manutenção passou a ser considerada uma obra pia, assim como o era a construção destas maisons-Dieu que, nessa época, eram erguidas ao longo de todos os grandes itinerários, asilos de reconforto para os caminhantes que nelas eram acolhidos e cuidados por homens caridosos reunidos em confrarias. Zelou-se também pela segurança. Ameaçados, os mercadores viajavam geralmente em tropas; caravanas disciplinadas e armadas reuniam, no início do verão, para uma campanha comercial curiosamente semelhante a uma expedição militar, os negociantes de uma mesma cidade, os usuários de um mesmo caminho. Mas esta organização comunitária nem sempre era suficiente contra os perigos de um mundo ainda muito compartimentado, em que cada potentado local detinha todos os direitos sobre o intruso que não tivesse residência no seu território. Nem por estarem agrupados em associações de viagem e de defesa, os mercadores de Langres, que todos os verões se reuniam no grande centro de consumo em que então havia se transformado a Abadia de Cluny, foram menos despojados do seu carregamento, em 1075, por um castelão local que não pudera resistir à tentação. Claro, as prescrições da paix de Dieu comprometiam-se a poupar especialmente os mercadores, mas a salvaguarda das caravanas só foi verdadeiramente assegurada por uma nova instituição, o conduit. Ao penetrar no território do castelo, e enquanto estivessem nos seus limites, os viajantes ficavam sob a proteção do senhor; por este encargo eles pagavam uma taxa especial, um seguro contra as espoliações, a peagem. Finalmente, foi preciso assegurar a paz nas feiras, estes grandes encontros de negócios, indispensáveis nas condições técnicas da circulação de então, pois permitiam, aos traficantes de uma região, entrar periodicamente em contato com comerciantes vindos de outras partes e renovar seus estoques, oferecendo suas próprias mercadorias a estes estrangeiros em troca de gêneros de proveniência mais longínqua. Algumas das inúmeras feiras que desde a Alta Idade Média apenas vegetavam, no início do século XII, sob o impulso de senhores poderosos e destacados, como os condes de Champagne, de Flandres ou os abades de Saint-Denis, que haviam logrado assegurar aos comerciantes uma proteção eficaz, chegaram a tornarem-se centros da mais animada renovação comercial, funcionando por alguns dias e em datas fixas.
Por outro lado, a expansão da circulação e das trocas determinou a da vida urbana. De fato, era preciso que houvesse, nas encruzilhadas das grandes rotas, nas proximidades dos santuários, nos portos dos rios, ao pé das montanhas, nas extremidades das pontes e nas planícies, em suma, nos locais normais de circulação de pedestres, pontos fixos em que os peregrinos e os negociantes pudessem repousar – balizas providas de um pessoal de auxílio, carregadores, barqueiros, fornecedores de alimentos imediatamente consumíveis, indispensáveis a todos estes errantes que não traziam consigo suas provisões.
O pessoal do comércio precisava, também, no inverno, uma estação que no campo é morta para os negócios, de locais de estadia mais prolongada. Assim, no século XII, os mercadores que percorrem os caminhos são, todos, vinculados a uma cidade; “forasteiros”, “poeirentos” para quem os vê passar, eles são, entretanto, dependentes de um senhor, ou da aglomeração em que residem no intervalo das expedições comerciais, e a quem têm que prestar contas quando querem partir.
Pela passagem dos viajantes no verão e pela permanência, no inverno, dos profissionais do negócio, a função essencial das cidades reanima-se. (...) Nas proximidades de uma antiga cidade romana, de algum castelo importante ou de um mosteiro célebre que seja muito visitado pelos peregrinos, forma-se um bairro novo a que chamam de burgo. Um alinhamento de cabanas simples em torno da grande praça onde se realiza o mercado, uma aglomeração bem rústica, simples apêndice de aspecto mesquinho, muito mais miserável, e frágil que a parte antiga, construída em pedra, que a domina e onde vai buscar refúgio ou proteger-se em caso de alerta, o novo burgo é, entretanto, o próspero centro da nova atividade.
Na verdade, as cidades do século XII são todas ainda pequenas: uma centena de habitantes, quatro ou cinco mil naquelas que são excepcionalmente animadas. Pontos de parada para todos os passageiros que não extraem, eles próprios, da terra sua alimentação, eles são notáveis centros de consumo de produtos agrícolas. Por isto, nas proximidades de cada burgo, de cada estação de posta, certo comércio de subsistências se propaga no campo. Ademais, alguns negociantes compram, agora, uma maior quantidade de produtos da terra que, como o vinho, a lã e as plantas tintoriais, tornam-se objeto de um movimento de maior amplitude. Desta forma, uma parte do trabalho camponês passa a ser comercializada e, pouco a pouco, mesmo nas regiões silvestres, cada qual se acostuma a um uso menos excepcional do dinheiro e a uma maior mobilidade de riqueza.
Bibliografia:
DUBY, Georges & MANDROU, Robert. Histoire de la civilization française. Moyen Âge – XVIe siècle. Quatrième édition. Paris: Armand Colin, 1958.
Tradução: Fani Goldfarb Figueira

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