Ótima análise sobre as
transformações ocorridas na baixa Idade Média. O desprendimento da terra, o
surgimento dos mercadores, das feiras e dos burgos
3. O século de
grandes progressos: 1070-1180.
B. Viagens, comércio
e moeda.
Para dizer a verdade,
a maneira de viver não foi, de imediato, tão radicalmente transformada. Mesmo
para a massa de camponeses, podemos dizer que não houve mudança, com exceção de
uma única, e esta, diga-se, essencial: os campônios não têm mais fome. De um
ano para outro, dependendo das alterações climáticas, a produção de alimentos
sofria notáveis variações; entretanto, desde 1050, aproximadamente, não
ocorreram mais as fomes terríveis que periodicamente haviam desolado a alta
Idade Média. Desde então, e durante muito tempo, os camponeses franceses
gozaram desta felicidade fundamental: a segurança alimentar.(...)
Em contrapartida, no
mundo dos senhores, clérigos ou laicos, o ritmo de vida cotidiana sofreu
alterações mais rápidas e mais visíveis. Os ricos sempre haviam comido tanto
quanto queriam, mas, haviam se mantido muito presos à terra. Agora eles podiam
se desprender. Em primeiro lugar, a abundância dos lucros senhoriais determina
que cada casa nobre expanda o grupo social essencial que então se chamava a
“corte”, isto é, a tropa de comensais e de agregados de que todo homem bem-nascido
deve se cercar. Os empregados domésticos, mais numerosos, tendem a se
especializar; entre eles se destacam alguns chefes de serviço. Os hóspedes de
qualidade, sobretudo, são cada vez mais numerosos, dado que no século XII é
muito mais fácil deslocar-se e ir visitar os amigos. Efetivamente o progresso
material permitiu que os homens se deslocassem muito mais. A viagem era, então,
o único meio de escapar ao atolamento rural, à pesada promiscuidade familiar,
de alargar as experiências, de conhecer-se. Por isso, a despeito dos perigos,
das fadigas, da lentidão dos caminhos, as viagens representam o mais excitante
e o mais necessário dos divertimentos. Esta é, pois, o tempo dos viajantes, que
caminham solitários ou acompanhados. São estudiosos em busca de novos livros ou
novos ensinamentos; monges que, malgrado a obrigação do claustro e para grande
escândalo dos reformadores, estão sempre à espreita de qualquer pretexto para respirar
o ar livre dos caminhos; peregrinos, sobretudo.
Com as novas
facilidades para viajar, a visita aos santuários célebres tornou-se
decididamente – em finais do século XI – o mais louvável dos atos de devoção,
considerado o mais eficaz para se alcançar o perdão e a benevolência dos
santos. Ricos e pobres, sem cuidar das distâncias, contando com a hospitalidade
das abadias, com a caridade dos que vivem à beira destes caminhos, lançam-se
por meses e anos em itinerários complexos, vagando de modo a não deixar de lado
nenhuma relíquia, mas tendendo, o mais frequentemente, para um dos três pontos
altos da cristandade: Roma, Santiago de Compostela ou Jerusalém. Deste modo, o
aumento do número dos que viajam constitui um aspecto essencial da grande
expansão do século XII, aspecto que, talvez, mais do que os demais, surpreendeu
os contemporâneos.
A animação dos
caminhos desperta, também, as trocas. Com a abastança decorrente do progresso
agrícola, os cavaleiros e camponeses têm agora menos dificuldades para satisfazer
seu profundo prazer com a aparência, com os ornamentos, estes objetos
estrangeiros, diferentes – e é isto que lhes dá preço – do habitual, do
doméstico, do rústico. É ainda, e por muito tempo, o comércio de alto luxo:
circulam apenas os gêneros de grande valor, especiarias, tecidos suntuosos; mas
a clientela é menos restrita, seus gostos mais variados, suas posses mais
amplas e, por conseguinte, o movimento é mais intenso. Em seu conjunto,
todavia, a Europa Ocidental – com a integração progressiva das comunidades
marítimas da Escandinávia e das povoações eslavas semi-selvagens da grande
planície nórdica com a cristandade latina; com o estabelecimento de relações
comerciais mais intensas com o Islã, desde as incursões da Espanha ao sul da
península italiana, e com Bizâncio, a partir do Adriático; e, ainda, fato
decisivo, com a reconquista militar das ilhas do Mar Tirreno e da Sicília, que
estavam sob o domínio dos muçulmanos, reconquista esta que tornou menos
arriscada a circulação dos cristãos entre as duas bacias do Mediterrâneo –
pouco a pouco sai do isolamento e da estagnação. Através do território francês,
passa a ter lugar um sistema de circulação mercantil, ainda embrionário, que se
apoia em três polos.
O primeiro deles,
entre a Flandres marítima, o vale do Oise e o baixo Sena, funciona como um
centro de fabricação desses tecidos de boa lã de cor brilhante que têm nos
nobres seus maiores compradores e, ao mesmo tempo, como um importante porto.
Para aí confluem, através da cabotagem fluvial e marítima, o sal da costa
Atlântica, o vinho do Sena e do Loire para serem exportados para as Ilhas
Britânicas ou para as costas do Mar do Norte e do Báltico. A seguir vem a
Catalunha, limiar da Espanha infiel, em que os traficantes cristãos trocam
armas e escravos por produtos preciosos do artesanato moçárabe.
O último ponto de
atração é a Itália, de onde os marinheiros, antigamente por Veneza e Amalfi,
hoje também por Piza e por Gênova, trazem os produtos do Oriente. Estes três polos
se ligam através dos campos franceses por caminhos fluviais e por ramificações
cada vez mais percorridas pelas mercadorias.
De fato, entre o
primeiro terço do século XI e por volta de 1075, se viu aparecer e se difundir
um novo tipo social: o homem que não trabalha a terra e que, entretanto, não é
senhor, nem mendigo, nem bandido, mas que, apesar de tudo, ganha a sua vida: o
mercador profissional. Aventureiro, sempre em marcha, negociante desta época
não espera os seus fregueses numa loja: ele os visita, exibe o seu estoque nos
castelos onde estão reunidos os vassalos para o Conselho, nos umbrais das
igrejas para os peregrinos, nas grandes festas a que comparecem os nobres e os
força a comprar. Temos aí uma outra grande novidade: antigamente, o rico
enviava seus servidores muito longe em busca de objetos exóticos;
aprovisionar-se era uma empresa que se planejava antecipadamente e que
continuava sendo arriscada. Agora, ao contrário, seus desejos são antecipados e
atiçados pelo mercador itinerante; tentado para adquirir estes objetos que lhe
são apresentados, ele pesca, na sua reserva, metais preciosos que antes não
sabia como usar, salvo como jóias grosseiras. Deste modo, pela instituição de
novas relações entre o comprador e o fornecedor, foram mobilizados, no decorrer
do século XI, os tesouros das igrejas e das câmaras senhoriais; novamente se
puseram a circular os metais preciosos de que o Ocidente não se havia desfeito
inteiramente, mas que se havia coagulado na Alta Idade Média pela paralisação
dos circuitos do comércio. No século XII, a moeda é, pois, mais abundante.
Peças novas foram cunhadas com a prata dos copos, dos braceletes e dos
paramentos do altar; ademais, o dinheiro não é o único instrumento monetário;
utiliza-se, também, a pimenta ensacada, ouro em palhetas. O dinheiro circula,
sobretudo, muito mais rápido. Mais comuns, as moedas têm também menos valor:
nos últimos anos do século XI tem início uma alta dos preços dos alimentos,
alta impossível de avaliar, mas que prosseguiu regularmente. Os homens começam
a se aperceber de que as moedas saídas das oficinas monetárias - oficinas então
tão numerosas, pois, em tempos de extremo desenvolvimento econômico, era
necessário que houvesse uma junto a cada mercado um pouco mais movimentado -
não são todas idênticas. Nova noção, a do curso das moedas; novo ofício, o de
cambista – aquele que pesa, maneja, cerceador também, prestamista, enfim, de
dinheiro.
Errante, portanto, o
mercador do século XII transporta consigo nas costas, ou mais frequentemente no
lombo das bestas de carga, os gêneros que possui – às vezes para muito longe,
como aqueles italianos protegidos do papa que, desde o reinado de Felipe I,
sofreram na região parisiense as exações reais. Coberto com o pó da viagem, ele
é, como o peregrino, um “poeirento” – e é assim que os mercadores então eram
chamados – um “forasteiro”, um desconhecido. O mercador torna-se objeto de
desconfiança e, por conseguinte, objeto de escândalo também, porque ele se
enriquece sem esforço visível porque ele rapa a moeda, porque, ao contrário do
que determinam os preceitos de caridade, ele revende aos seus irmãos, com
lucro, aquilo de que necessitam e não pode, por isso, ser amigo de Deus. Mas o
mercador torna-se também objeto de cobiça, pois seus alforjes estão repletos de
objetos extraordinários e de mais dinheiro do que jamais se viu reunido no
campo. Não obstante, a partir do ano mil, pouco a pouco, se abriu espaço para
os homens de passagem, viajantes ou negociantes. Inicialmente os caminhos foram
um pouco melhorados.
A maior parte das antigas
pontes da França teve seus atuais fundamentos lançados no século XI e a sua
manutenção passou a ser considerada uma obra pia, assim como o era a construção
destas maisons-Dieu que, nessa época, eram erguidas ao longo de todos os
grandes itinerários, asilos de reconforto para os caminhantes que nelas eram
acolhidos e cuidados por homens caridosos reunidos em confrarias. Zelou-se
também pela segurança. Ameaçados, os mercadores viajavam geralmente em tropas;
caravanas disciplinadas e armadas reuniam, no início do verão, para uma
campanha comercial curiosamente semelhante a uma expedição militar, os
negociantes de uma mesma cidade, os usuários de um mesmo caminho. Mas esta
organização comunitária nem sempre era suficiente contra os perigos de um mundo
ainda muito compartimentado, em que cada potentado local detinha todos os
direitos sobre o intruso que não tivesse residência no seu território. Nem por
estarem agrupados em associações de viagem e de defesa, os mercadores de
Langres, que todos os verões se reuniam no grande centro de consumo em que
então havia se transformado a Abadia de Cluny, foram menos despojados do seu
carregamento, em 1075, por um castelão local que não pudera resistir à
tentação. Claro, as prescrições da paix de Dieu comprometiam-se a poupar
especialmente os mercadores, mas a salvaguarda das caravanas só foi
verdadeiramente assegurada por uma nova instituição, o conduit. Ao penetrar no
território do castelo, e enquanto estivessem nos seus limites, os viajantes
ficavam sob a proteção do senhor; por este encargo eles pagavam uma taxa
especial, um seguro contra as espoliações, a peagem. Finalmente, foi preciso
assegurar a paz nas feiras, estes grandes encontros de negócios, indispensáveis
nas condições técnicas da circulação de então, pois permitiam, aos traficantes
de uma região, entrar periodicamente em contato com comerciantes vindos de
outras partes e renovar seus estoques, oferecendo suas próprias mercadorias a
estes estrangeiros em troca de gêneros de proveniência mais longínqua. Algumas
das inúmeras feiras que desde a Alta Idade Média apenas vegetavam, no início do
século XII, sob o impulso de senhores poderosos e destacados, como os condes de
Champagne, de Flandres ou os abades de Saint-Denis, que haviam logrado
assegurar aos comerciantes uma proteção eficaz, chegaram a tornarem-se centros
da mais animada renovação comercial, funcionando por alguns dias e em datas
fixas.
Por outro lado, a
expansão da circulação e das trocas determinou a da vida urbana. De fato, era
preciso que houvesse, nas encruzilhadas das grandes rotas, nas proximidades dos
santuários, nos portos dos rios, ao pé das montanhas, nas extremidades das pontes
e nas planícies, em suma, nos locais normais de circulação de pedestres, pontos
fixos em que os peregrinos e os negociantes pudessem repousar – balizas
providas de um pessoal de auxílio, carregadores, barqueiros, fornecedores de
alimentos imediatamente consumíveis, indispensáveis a todos estes errantes que
não traziam consigo suas provisões.
O pessoal do comércio
precisava, também, no inverno, uma estação que no campo é morta para os
negócios, de locais de estadia mais prolongada. Assim, no século XII, os
mercadores que percorrem os caminhos são, todos, vinculados a uma cidade;
“forasteiros”, “poeirentos” para quem os vê passar, eles são, entretanto,
dependentes de um senhor, ou da aglomeração em que residem no intervalo das
expedições comerciais, e a quem têm que prestar contas quando querem partir.
Pela passagem dos
viajantes no verão e pela permanência, no inverno, dos profissionais do
negócio, a função essencial das cidades reanima-se. (...) Nas proximidades de
uma antiga cidade romana, de algum castelo importante ou de um mosteiro célebre
que seja muito visitado pelos peregrinos, forma-se um bairro novo a que chamam
de burgo. Um alinhamento de cabanas simples em torno da grande praça onde se
realiza o mercado, uma aglomeração bem rústica, simples apêndice de aspecto
mesquinho, muito mais miserável, e frágil que a parte antiga, construída em
pedra, que a domina e onde vai buscar refúgio ou proteger-se em caso de alerta,
o novo burgo é, entretanto, o próspero centro da nova atividade.
Na verdade, as cidades
do século XII são todas ainda pequenas: uma centena de habitantes, quatro ou
cinco mil naquelas que são excepcionalmente animadas. Pontos de parada para
todos os passageiros que não extraem, eles próprios, da terra sua alimentação,
eles são notáveis centros de consumo de produtos agrícolas. Por isto, nas
proximidades de cada burgo, de cada estação de posta, certo comércio de
subsistências se propaga no campo. Ademais, alguns negociantes compram, agora,
uma maior quantidade de produtos da terra que, como o vinho, a lã e as plantas
tintoriais, tornam-se objeto de um movimento de maior amplitude. Desta forma,
uma parte do trabalho camponês passa a ser comercializada e, pouco a pouco,
mesmo nas regiões silvestres, cada qual se acostuma a um uso menos excepcional
do dinheiro e a uma maior mobilidade de riqueza.
Bibliografia:
DUBY, Georges
& MANDROU, Robert. Histoire de la civilization française. Moyen Âge –
XVIe siècle. Quatrième édition. Paris: Armand Colin, 1958.
Tradução: Fani
Goldfarb Figueira
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