Observação
importante:
O presente livro de Paul
Strathern trabalha como uma espécie de biografia intelectual de Maquiavel.
Mostrando como o meio em que viveu o autor de O Princípe foi fundamental para o pleno desenvolvimento de sua
teoria política, e como esta se desenvolveu e amadureceu ao longo dos anos.
Boa Leitura.
Introdução.
Apesar do nome Maquiavel ter se
tornado sinônimo de maldade, com a criação do termo maquiavélico, sua filosofia
política não era nem boa nem má. Apenas realista.
A filosofia da arte de governar
que ele elaborou pretendia ser científica, e isto não dava espaço para o
sentimento, a compaixão ou, em especial, a moral.
O
Príncipe
nada mais é que um livro de conselhos a um príncipe (ou qualquer governante),
sobre como dirigir o Estado. Sendo que o principal objetivo de qualquer
príncipe é se manter no poder e dirigir o Estado em seu melhor proveito pessoal.
A filosofia política de Maquiavel
reflete profundamente, o seu tempo e as circunstâncias que enfrentou, contudo
ainda hoje conserva um toque de contemporaneidade, sendo um reflexo da
perturbadora condição humana.
Vida
e obra.
Niccolo Maqueavelli nasceu em
Florença, em 3 de maio de 1469, em uma velha família toscana decadente.
O jovem Maquiavel viveu em uma
Florença que emergia do topor intelectual da Idade Média, em uma Itália que
liderava o ocidente rumo a Renascença. Era possível sonhar, nesse momento, com
uma Itália unificada, grande, como nos tempos do Império Romano.
Florença era o coração do
Renascimento italiano, como os Médici, os Pazzi e os Strozzi, controlavam a
nova tecnologia da época: o Banco Mercantil. O Banco Mercantil era a mais revolucionária
tecnologia de comunicações do período. Seu desenvolvimento no século XIV havia
transformado gradualmente o comércio e as comunicações em toda Europa. Agora, a
riqueza podia ser transmitida, na forma de crédito ou saque bancário, de um
extremo do continente a outro, liberando o comércio das costumeiras restrições
de pagamento por escambo ou em espécie. Seda e especiarias do Extremo Oriente
chegadas por terra em Beirute podiam ser compradas por meio de transferência
financeira e embarcadas para Veneza.
Em 1414 os Médici conseguiram a
grande cartada: eram os banqueiros do papa. Em 1934, Cosme Médici não era mais
somente o homem mais rico da Europa, mas uma espécie de Príncipe da república
Florentina.
A cidade florescia como nunca,
alcançando renome internacional. A moeda local (o florim), era o dólar da
época. Em meio ao caos da cunhagem europeia (as vezes existam várias moedas em
circulação dentro de um mesmo país), o Florim era reconhecido como o padrão
monetário internacional.
O dinheiro logo colocou de lado a
tradicional perspectiva medieval de amor à pobreza. As páginas do livro-razão
dos Médici vinham timbradas com a frase “em nome de Deus e do lucro”.
O fato é que Cosme de Médici era
cristão e extremamente temente a Deus. E a prática da usura era inequivocamente
proibida pela Bíblia. Então, conforme envelhecia, Cosme começou a ficar cada
vez mais perturbado com a perspectiva de danação eterna. Assim começou a
reformar, construir e decorar inúmeras igrejas. Os Médici tornaram-se os
maiores patronos privados de arte jamais vistos no mundo. Esse era o
financiamento que faltava para a eclosão do Renascimento.
Graças ao ressurgimento do
interesse pela Antiguidade Clássica greco-romana, autores clássicos foram
redescobertos sufocando a antiga escolástica cristã medieval. Toda a maneira de
ver o mundo foi transformada. A existência já não era mais uma provação para se
poder chegar ao outro mundo, mas uma arena em que devíamos demonstrar a nossa
capacidade. O jovem Maquiavel absorveu tudo avidamente.
O Renascimento é a ruptura com o
pensamento medieval e esta à meio caminho da Idade da Razão. Ele é formado por
uma curiosa mistura de teologia cristã, pensamento clássico, atitude científica
embrionária e magia medieval.
Maquiavel seria ai meio que uma
exceção – talvez por ser autodidata –, pois seus textos eram escandalosamente
isentos de ilusão e superstição.
O apogeu do Renascimento
florentino veio com Lourenço (neto de Cosme Médici) que sem dúvida fez jus à
sua origem.
O jovem Maquiavel presenciou um
fato que mudaria sua maneira de ver o mundo. Durante a chama Conspiração de
Pazzi de 1478 que tentou, sem sucesso, assinar Lourenço, Maquiavel aprendeu uma
importante lição – faça aos outros o que eles fariam a você, mas faça primeiro
e seja definitivo.
Em 1494, apenas dois anos após a
morte de Lourenço, Florença foi invadida pelo rei Francês Carlos VIII, e os
Médici tiveram que fugir. Embora essa ocupação francesa fosse mais simbólica
que real, a cidade corria o perigo de perder sua independência para uma potência
estrangeira. Neste momento Maquiavel aprendeu outra lição – só uma Itália
unificada poderia resistir ao poderio francês e às invasões estrangeiras.
Após esse período surge a
República Cristã de Savonarola (1494-1498) e logo em seguida o período em que
Sorderini foi eleito gonfaloniere, e
pela primeira vez Maquiavel surge das sombras, conseguindo um cargo público e
sendo enviado em missões diplomáticas de pequena importância. Não demorou muito
para Maquiavel começar a se destacar por suas habilidades.
Contudo, Florença enfrentava uma
nova ameaça. O filho do papa, César Bórgia, estava usando o exército papal
(ajudado por tropas francesas) para tentar criar um novo principado
independente, para si, na Itália central.
Maquiavel foi enviado em um série
de missões para informar sobre os levantes nos territórios de Florença e como
embaixador no quartel-general dos Bórgia (funcionou como um espião creditado).
Maquiavel observa então, que
Bórgia possuía o atributo dos grandes homens: é um oportunista manhoso e sabe
usar a melhor chance para tirar a maior vantagem.
A forma como Bórgia tratou seus
comandantes rebeldes e os meses que Maquiavel passou com ele, foram
fundamentais na criação de uma ciência política distinta e independente de
qualquer consideração moral, era a chamada Realpolitik.
Em 1503 o papa – pai de César
Bórgia – morre e é então substituído por um papa inimigo declarado da família.
César é então condenado a viver como fugitivo. E Maquiavel sente um pouco de
desgosto ao ver seu “ídolo” fugir como um fraco.
A política de Florença ainda
continuava conturbada e Maquiavel, por suas ideias, foi ganhando cada vez mais
prestígio. Defendeu a criação de uma milícia Florentina, contra o uso de forças
mercenárias e de certa forma liderou o cerco à cidade de Pisa.
Em 1507, entra em cena um novo
ator na rixa italiana, o Imperador do Sacro-Império Romano Germânico
Maximiliano I, aliado de Milão – rival de Florença – preparava um ataque ao
norte da Itália. Maquiavel foi enviado como embaixador na corte de Maximiliano,
onde ficou por seis meses.
Ao retornar estava pronto para
montar sua milícia e assim o fez. Seu ato foi fundamental para a retomada de
Pisa em 1509.
Em 1511, Maquiavel foi enviado à
França para tentar evitar uma invasão francesa a Milão. Pois, apesar de rivais,
uma guerra envolvendo Milão e França, inevitavelmente envolveria também o Sacro
Império, os espanhóis, Veneza e Florença. Maquiavel tentou de todas as formas
negociar, mas foi inútil. Neste momento ele aprendeu outra lição: quando você
tem o poder na luta pelo poder, não há necessidade de negociar.
Os acontecimentos desenrolaram-se
rapidamente. O papa se declarou contra Florença e a favor do retorno dos
Médici. A Santa Aliança marchou sobre Florença. A milícia local se recusou a
enfrentar as poderosas forças espanholas e os cidadãos se ergueram a favor dos
Médici. Sorderini fugiu e Juliano de Médici marchou sobre Florença.
Esse foi o fim para Maquiavel.
Destituído de seu posto, de sua cidadania e levado à falência, foi banido da
cidade e exilado em sua pequena propriedade. Com 43 anos sua vida estava em
ruínas.
Mas o pior estava por vir. Em 1513
foi descoberto um complô para assassinar Juliano de Médici. Um dos
conspiradores tinha uma lista de 20 nomes que ajudariam caso o assassinato
tivesse êxito. Maquiavel estava na lista. Foi então expedido um mandato de
prisão contra ele. Ao saber disso Maquiavel se entregou para poder provar sua
inocência. Ele é então preso e submetido à quatro sessões de tortura.
Eis uma lição que ele aprendeu na
pele e que teve grande efeito sobre ele e sua obra. Sua teoria política deu
grande ênfase à tortura. Um príncipe “deve ser sempre temido em função dos castigos
que pode infligir”. A dor e o medo de senti-la são o que está por trás do
respeito às sanções morais, leis e tratados.
Depois de dois meses na Prisão de
Bargello, Maquiavel foi libertado e voltou a viver em sua pequena propriedade.
Ele odiava cada dia da rotina no
campo, queria a todo custo voltar à vida política. Tentou de todas as maneiras
mostrar os Médici que agirá por Florença e não por esta ou aquela facção
política, sem sucesso.
Então, num inspirado ardor
Maquiavel concluiu o Príncipe entre a primavera e o outono de 1513. Tudo o que
aprendera fundiu-se em uma filosofia prática, simples e profunda.
O amargo desespero o despojou de
toda ilusão e ele viu a impiedosa verdade da vida política. O mundo tal qual
ele sempre foi.
O Príncipe é dirigido a um príncipe
que esteja governando um Estado e o aconselha sobre como manter seu governo da
forma mais eficiente possível. Maquiavel viu a política como uma ciência e nessa
busca por eficiência despojou-se de toda ética e compaixão.
Aqui o autor faz um parênteses sobre
a forma como Maquiavel é lido por executivos, funcionários públicos e políticos
nos dias de hoje. Segundo ele, O Príncipe é um conjunto de conselhos ao
príncipe sobre como governar o Estado e não um guia de moralidade pessoal.
Assim sendo, devemos colocar o livro em seu contexto de produção, a conturbada
vida política das cidades-estados Renascentistas.
O livro começa com Maquiavel
descrevendo os diferentes tipos de Estado e as diferentes formas de governar
sobre eles. Também ensina como conquistar um Estado e manter o domínio sobre
ele.
Maquiavel segue distinguindo os
tipos de governo. Os centralizados (como por exemplo a Turquia) e os
descentralizados (França). O primeiro é difícil de conquistar e fácil de
controlar, o segundo é fácil de conquistar e difícil de controlar.
Mais adiante, Maquiavel aconselha
a crueldade a todos que de alguma forma tentam tomar o poder criminosamente.
Maquiavel segue recomendando “quando
tomar um Estado, o conquistar deve infligir todos os danos de uma vez só, para
não ter que infligi-los diariamente. Isso tranquiliza o povo e o faz ganhar
apoio ao distribuir favores”.
Na segunda metade do livro Maquiavel
descreve as virtudes que o príncipe deve adquirir e os vícios que deve evitar
para se manter no poder.
O novo governante deve fazer seu
governo parecer firme e estabelecido. “os homens devem ser tratados com
generosidade ou destruídos, porque podem se vingar de pequenos danos – os danos
pesados eliminam tal inconveniente”.
Isso nos leva à questão: é melhor
ser temido ou amado? Segundo Maquiavel, os dois, mas diante da dificuldade de
possuir ambos, é melhor ser temido. Maquiavel é pragmático na análise da
natureza humana, enquanto não se é despojado de suas propriedades e de sua
honra, a maioria das pessoas está satisfeita.
Mais adiante Maquiavel trabalha
com o conceito de virtú (virtude) que
são as qualidades pessoais do príncipe. Contudo, esse conceito de virtú não tem nada a ver com a ideia
cristã do bem, humildade, caridade, etc. A ideia de virtú de Maquiavel se assemelha as ideias clássicas de virtude –
justiça, força moderação, prudência, virilidade, potência, poder. Para
Maquiavel, quanto mais difícil for manter o poder, mas virtú o príncipe terá que demonstrar.
Sempre que possível, um
governante deve tentar manter as coisas intactas durante sua conquista. Mínimo
de interferência nas instituições, nos costumes, tradições, línguas, etc. Contudo,
quando não for possível é melhor destruir totalmente o Estado que se
conquistou. É melhor governar sobre ruínas e uns poucos sobreviventes, do que
não governar. Isso ilustra bem a visão de Maquiavel, o bem-estar do Estado é
secundário, fundamental mesmo é manter o poder.
Ainda segundo Maquiavel quanto
mais territórios conquistados através da destruição, mais o príncipe deve se
mostrar virtuoso.
A virtú se relaciona com dois outros conceitos: a fortuna (sorte) e a occasione (oportunidade).
Para Maquiavel, controlamos
apenas metade do nosso destino – o resto está na mão da fortuna. E a História é recheada de casos assim. A fortuna apresenta a occasione. Cabe ao príncipe reconhecer a oportunidade oferecida
pela sorte e aproveitá-la. O príncipe também deve fazer o máximo para eliminar
as oportunidades dos adversários.
Maquiavel ainda afirma que o príncipe
deve ter sensibilidade para perceber que em alguns momentoso que lhe parece uma
virtude pode levá-lo à ruina e o que parece um vício pode salvar-lhe o poder.
Governar não é questão de bondade ou maldade, mas luta contínua entre a virtú forçosa e os caprichos da fortuna.
Isso significa que o príncipe deve
estar preparado para mudar de política de acordo com as circunstâncias. Aderir
a algum princípio pode levar o príncipe à ruina.
Maquiavel possuí uma visão
extremamente pessimista da natureza humana.
Devemos entender que apesar da obra
de Maquiavel ser considerada amoral, o próprio Maquiavel se considerava um
moralista e sua obra tem o intuito de descrever o mundo como ele via, não como
desejava que fosse.
Maquiavel era um patriota que
desejava ver a Itália unificada novamente (a última vez foi durante o Império
Romano) e escreveu o livro dedicando-o a Julian de Médici, mas antes que ele
terminasse o livro Juliano deixou de governar Florença e seu primo Lourenço de
Médici assume o poder. Maquiavel, então, reedita o livro e o dedica ao “Il
Magnifico Lourenço”.
Mas uma vez terminado o livro, o
problema tornou-se como entregá-lo. Maquiavel havia caído em desgraça e tinha
muitos inimigos na corte, ou seja, não conseguiria entregá-lo em mãos.
Outro problema é que o próprio
livro diz que o príncipe não deve se aconselhar com os outros, devendo-se supor
que todas as ideias são dele mesmo. Se tivesse conseguido apresentar o livro
àquele a quem foi dedicado, talvez hoje estivéssemos lendo O Príncipe por
Lourenço de Médici.
Em 1519 Lourenço morreu e foi
sucedido pelo carde Júlio de Médici que deu uma nova chance à Maquiavel. Mesmo
decepcionado (queria participar da política), Maquiavel acabou se tornando o
historiador oficial de Florença.
Em 1523, Júlio de Médici
tornou-se papa e abandonou o governo de Florença. Então as coisas ficaram
difíceis. Carlos V rei da Espanha e do Sacro Império Romano, ameaçava toda
Itália. Maquiavel foi encarregado da fortificação de Florença, mas foi inútil.
Em maio de 1527 o exército de Carlos V saqueou Roma. Simultaneamente os
cidadãos de Florença se levantaram contra os Médici, inaugurando uma nova
República.
Maquiavel cai em desgraça outra
vez. Isso foi demais para ele. O desgosto foi tanto que caiu enfermo e morreu
no mês seguinte no dia 21, aos 58 anos de idade.
Posfácio.
Maquiavel foi trapaceiro, astuto,
falaz e indigno de confiança – e defendeu esse tipo de comportamento em seu
livro. Mas ao fazer isso desnudou a natureza humana. Logo surgiram grupos (e a
Igreja) que discordavam dessa visão da natureza humana, ninguém poderia se
comportar como o príncipe, aquilo só podia ser obra de um demônio.
Todo esse estardalhaço ocorreu
pelo fato de Maquiavel ter sido usado pelos protestantes, durante a Reforma, para
denunciar os abusos da Igreja.
Além disso, Maquiavel expôs uma
ruptura ainda mais profunda. Desde os primórdios da filosofia, os pensadores
assumiram implicitamente que os seres humanos eram essencialmente os mesmo. Que
existia uma espécie de coisa chamada natureza humana universal. O que implicava
uma força ideal de sociedade na qual todos os seres humanos podiam viver
melhor. Platão tentara descrever essa utopia na República. Outros sugeririam
forma de melhorar a sociedade humana pelo bem de todos os envolvidos. No
iluminismo, os pensadores acreditavam na harmonia final dos valores humanos e
buscaram os princípios básicos da natureza humana e uma sociedade na qual esse
princípio pudesse ser expresso. Outras tentativas de criar sociedades
harmoniosas surgiram depois com o marxismo, o coletivismo e o socialismo. Essa
crença de que pudéssemos viver juntos em paz, amor e harmonia persistiu até
depois da década de 1960.
Maquiavel já deixava bem claro em
sua obra a impossibilidade desses projetos. No Príncipe fica claro a
contradição entre governar um Estado e ao mesmo tempo levar uma vida moral.
Para governar é necessário ser amoral.
Se moralidade e a ciência
política estão separadas, como nos mostrou Maquiavel, simplesmente não temos
balizamento para um juízo universal. Isso significa que a Alemanha Hitlerista está
em pé de igualdade com o Reino Unido parlamentarista. Tudo isso é deprimente. Mas
hoje sabemos que na era pós-freudiana a psicologia humana não é racional e nem
coerente, mas por outro lado, todo governo é racional e coerente. A satisfação
popular e a experiência pública estão fadadas a entrar em conflito.
Maquiavel foi o primeiro escritor
a apontar essa verdade desagradável da condição humana. Com sua teoria política
realista colocou a humanidade face a face com sua mais profunda e talvez insolúvel
dicotomia.
Referências;
STRATHERN, Paul. Maquiavel em 90 minutos. Rio de Janeiro. Zahar. 2001.
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