Neste momento tropas
brasileiras ocupam o Haiti, indígenas bolivianos protestam contra a construção
de estradas em sua reserva e empresas brasileiras investem pesado no exterior,
nós fazemos uma pergunta: O Brasil é imperialista?
O Brasil é o país do
samba, do futebol e da cordialidade certo? Não é o que pensam nossos vizinhos
da América do Sul, que nos acusam de imperialismo. A análise fria da história
mostra que os Hermanos têm alguma razão...
Em abril de 1866, uma
coalizão de países conhecida como Tríplice aliança invadiu a república do
Paraguai e iniciou uma das ocupações mais catastróficas na história das
Américas. O objetivo oficial era derrubar o ditador Solano López. Teoricamente,
uma cruzada contra a tirania, em nome da liberdade e da civilização –
semelhante à guerra que George W. Bush iniciou em 2003. Mas os paraguaios, como
os iraquianos, penaram com as consequências de sua “libertação”: cerca de 70%
da população morreu na guerra e sua economia ficou dependente dos conquistadores.
Século e meio depois, nacionalistas paraguaios ainda reclamam que o país foi
vítima da maior agressão imperialista na América do Sul. Detalhe: o país líder
da coalizão foi o Brasil.
Se você ficou
surpreso ou ofendido com o parágrafo acima, certamente não está só. Parta a
maior parte dos brasileiros hoje, “imperialista” é um rótulo que combina apenas
com os EUA. Mas entre uruguaios, paraguaios, equatorianos e outras nações
vizinhas, o “país do jeitinho” é um colosso que inspira respeito. E revolta –
por causa do tamanho, da economia gulosa e da projeção internacional, o Brasil
às vezes é visto como um país aproveitador e prepotente. Esse antibrasileirismo
tem seu quê de sensacionalista, mas também carrega algumas verdades
desconfortáveis. Apesar da fama de cordial e avesso a brigas, o Brasil ganhou
seu lugar no mundo, passando de colônia europeia a potência emergente, da mesma
forma que todos os Estados modernos: a ferro e fogo. Hoje a projeção do país na
América do Sul (e no mundo) atrai críticas ferozes ao lado de elogios
entusiásticos. Nestas páginas você vai conhecer os dois lados do império
tropical.
Fronteiras e sangue.
O imperialismo é a
dominação política ou econômica que um Estado exerce – na marra, se necessário-
sobre outros mais fracos. O termo surgiu no século XIX, quando nações europeias
como Inglaterra e França chegaram a dominar 80% do planeta. Exemplos recentes
são os EUA e a URSS, que cimentaram sua hegemonia financiando golpes de Estado
e apoiando ditaduras.
Mas o tipo mais
simples e agressivo de imperialismo é mesmo a expansão de fronteira – e, até um
século atraso país do samba viveu num sangrento baile territorial com seus Hermanos
hispânicos. O racha começou antes que os Estados sul-americanos existissem: em
7 de junho de 1494, quando Portugal e Espanha assinaram o Tratado de
Tordesilhas, dividindo o mundo “a descobrir” entre duas nações. A fronteira
virtual passava a 2 mil quilômetros de cabo verde, exatamente sobre a então
inexplorada América do Sul. Após o “terra a vista” de 1500, os portugueses
aumentaram sua colônia pelas armas, e o Brasil foi virando o que é hoje: uma
enorme ilha lusófona num mar de fala espanhola.
Após a independência,
em 1822, o Brasil virou império até no nome, um Estado poderoso cercado de 9 repúblicas
menores. Quase todas assustadas pela proximidade do gigante. Só a então
próspera Argentina ousava competir: no século 19, ela disputava com o Brasil a
influência sobre os vizinhos. O grande palco desse duelo, que um século depois
passaria aos campos de futebol, foi o Uruguai. Em 1821, o país foi invadido pelas
tropas daquilo que na época era o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves –
a mentora da operação foi a rainha Carlota Joaquina, nascida na Espanha, que
sonhava com um Estado hispano-português cujas terras atingissem o rio da Prata.
A independência uruguaia veio em 1928 com a ajuda nada desinteressada de
exércitos mandados por Buenos Aires. Décadas depois, Solano Lopez se meteu no
tango estratégico: num desafio desastrado ao poderio brasileiros e argentinos,
o Paraguai atacou ambos em 1864. E se deu muito mal: os velhos rivais se
uniram, arrastaram junto o satélite Uruguai, rechaçaram Solano e logo invadiram
o Paraguai. Depois de saquear Assunção, as tropas brasileiras mataram o ditador
em 1870. Nesses 6 anos, a destruição foi enorme - cerca de 600 mil
paraguaios morreram. “O Paraguai foi o primeiro país da região a ter
telégrafos, fornos siderúrgicos e indústria pesada. A guerra destruiu tudo
isso”, diz o historiador Fernando Lopez D’Alessandro, da Universidade de
Montevidéu. “E não foi por acaso. A tríplice aliança tinha a intenção de
transformar o Paraguai num exemplo a quem desafiasse sua hegemonia”.
Hoje, muitos
historiadores brasileiros acham que a invasão foi uma resposta legítima à
agressão de Solano. Os paraguaios, claro, discordam. “O que a Tríplice Aliança
cometeu foi um genocídio”, diz o sociólogo Enrique Chase, diretor do instituto
de Comunicação e Arte de Assunção. Após a Guerra o Brasil anexou um pedaço do
país derrotado e o ocupou até 1876. A economia local nunca se recuperou e até
hoje muitos culpam o Brasil pelo subdesenvolvimento do país. Em 2004, grupos
paraguaios de extrema esquerda invadiram dezenas de fazendas na fronteira leste
do país – propriedades compradas por imigrantes brasileiros, que hoje somam
cerca de 500 mil pessoas. O grito de guerra dos invasores não incluía chavões
marxistas. Eles gritavam: “Brasileños,
fuera!”.
Nova potência.
A hegemonia
brasileira foi eclipsada no século 20 pela política externa dos EUA, que
engolfou as Américas após a 2ª Guerra. E, por décadas, as reclamações contra o
imperialismo verde-amarelo ficaram ralas (exceto no Paraguai, onde o Brasil
nunca perdeu a fama de vizinho abusado). Nos anos 80 surgiram novos polos de
força no chamado terceiro mundo. A diplomacia brasileira impôs respeito em 199,
impulsionando a criação do Mercosul, o tratado de livre comércio inclui
Argentina, Uruguai e Paraguai. Foi uma tentativa de desfazer o tal racha sul-americano
– e uma jogada esperta contra a supremacia dos EUA, acostumados a tratar a
América Latina como seu quintal estratégico.
Por pensar assim, o
Brasil era visto como um paladino internacional do terceiro mundo – até o
início do século 21. Daí por diante, segundo os críticos, nossas ambições de potência
tropical subiram a cabeça. Sintoma disso seria o discurso de Lula ao tomar
posse do Parlamento em janeiro de 2003: o novo presidente afirmou que o Brasil
era o “líder natural” dos vizinhos, espalhando acusações de arrogância aos
quatro ventos do Mercosul. Outro argumento para o antibrasileirismo veio no ano
seguinte, quando o Brasil se candidatou a um assento no Conselho de Segurança
da ONU: oficialmente responsável por manter a paz no mundo, o órgão é acusado
de defender só os interesses das grandes potências. E para abrilhantar sua
campanha, o Brasil aceitou o comando das tropas da ONU enviadas ao Haiti,
sacudido por conflitos civis em 2004. Hoje muitos analistas veem na “missão de
paz” uma interferência indevida das potencias graúdas no pequeno país caribenho
– e o Brasil, para a fúria das detratores, está bem no meio da confusão.
Mas as maiores
reclamações antitupiniquins pipocam mesmo na arena da economia globalizada.
“Com a estabilização econômica nos anos 90, nossas empresas passaram a investir
no exterior, principalmente na América Latina e na África”, diz o cientista
político Ciro Torres, do instituto Brasileiros de Análises Econômicas (Ibase).
Hoje estamos entre as 12 nações que mais investem lá fora: só em 2006,
transnacionais verde-amarelas aplicaram impressionantes US$ 28 bilhões em
países estrangeiros. E é claro que essa pujança traz suas benesses a regiões
pobres – a companhia de construção pesada Odebrecht, por exemplo, emprega hoje
mais de 12 mil pessoas em Angola e investe milhões em projetos sociais. Mas,
junto à expansão, vêm as críticas. “Em alguns lugares, as companhias
brasileiras são acusadas de se comportas como multinacionais americanas,
cometendo abusos contra a natureza e os direitos humanos”, diz torres, que
coordena um mapeamento de impactos positivos e negativos das companhias
brasileiras no exterior. “Muito disso pode ser boato, mas temos de monitorar a
nós mesmos para não ganhar fama de vilões”.
A mais incendiaria
dessas polemicas envolve a presença da Petrobrás na Amazônia equatoriana. Em
junho, a estatal brasileira ganhou uma concessão para extrair petróleo no
Parque Nacional Yasuní, que abriga diversas nações indígenas e é uma das
regiões de maior biodiversidade do planeta segundo a ONU. O projeto de abrir
estradas e cavar poços no santuário ecológico despertou a irá de ambientalistas
e indígenas. Em outubro dezenas de indígenas vestindo cocares de plumas
marcharam em frente ao palácio do governo em Quito, exigindo que a petroleira
canarinho volte para casa. A Petrobrás disse a Super que o local é mesmo uma joia
ecológica e que tecnologias de ponta serão usadas para não o prejudicar – mas
esses argumentos não aplacaram os críticos. “A lei brasileira proíbe a
exploração de petróleo em reservas indígenas – ou seja, a Petrobras está
fazendo aqui o que não pode fazer aí”, diz o equatoriano Javier Leon, da ONG Accíon Ecológica. “A concessão só
ocorreu porque a influência do governo brasileiro é muito forte. O Brasil está
criando sigilosamente um pequeno império no hemisfério sul”, acusa Leon. Mas
será que o impávido colosso tão malvado como pintam? Na dúvida, leia os
exemplos a seguir.
O malandro, o caubói
e o caudilho.
Em 2006, o
recém-eleito Evo Morales nacionalizou o gás boliviano e ocupou com soldados as
plantes da Petrobras no país. Em vez de chiar, o Brasil deu tapinhas malandros
no ombro do enfezado vizinho – e, em 2007, o ministro brasileiro das Relações
Exteriores foi negociar um acordo mais favorável a Bolívia. Tudo resolvido com
jeitinho. Já em 1953, quando um primeiro-ministro iraniano expulsou do país uma
petroleira ocidental, a CIA organizou um golpe de Estado, acabou com a nascente
democracia do país e colocou no poder um ditador fantoche, acendendo o estopim
do antiamericanismo no Oriente Médio. E o resto você sabe.
Aliás, para encontrar
imperialistas mais truculentos que o Brasil, nem é preciso ir a América do
Norte. O venezuelano Hugo Chávez, que hoje batalha um lugar no Mercosul,
cultiva tentáculos políticos nada sutis. Um exemplo: em outubro, o embaixador
da Venezuela em Buenos Aires foi acusado de financiar grupos chavistas, que,
segundo a mídia argentina, somam 30 mil militantes no país. A Venezuela, por
sinal, tem disputas territoriais com o Suriname e a Guiana – em novembro, o
exército venezuelano foi acusado de atravessar a fronteira e disparar tiros
contra navios guianeses. Até 2020, o governo Chávez planeja investir US$ 60
bilhões nas Forças Armadas, o que tornaria a Venezuela a maior potência militar
da América Latina. “Chávez não é de esquerda nem de direita. É um caudilho”,
opina o historiador Marco Villa, da Universidade Federal de São Carlos.
Caudilhismo alimentado pelos lucros do petróleo- afinal de contas, a Venezuela
é um dos maiores exportadores do mundo. Por isso, a descoberta em novembro das
mirabolantes jazidas de Tupi, com seus estimados 8 bilhões de barris de
petróleo tinindo de fresco, lança uma sombra na camaradagem entre os governos
brasileiro e venezuelano. Com Tupi na manga, o Brasil em alguns anos pode ser
não panas um dos maiores produtores das Américas, mas do mundo.
Tudo isso acaba numa
pergunta: o Brasil pode ser uma “potência não imperialista?” “Sim. Se o Brasil
fosse mesmo imperialista, é claro não teria tratado a Bolívia com tanta brandura
em 2006”, responde o geógrafo Diego Pautasso, do Núcleo de Estudos de Relações
internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Ele está entre os
estudiosos que apontam na potência tupiniquim o sintoma de uma nova e bem-vinda
ordem mundial. “O modelo da superpotência global, que impõe sua vontade a
todos, está obsoleto. O futuro será das potências regionais, que servem de
carro-chefe a suas regiões e negociam em vez de mandar. Se ganharmos um assento
no conselho de segurança da ONU, a América Latina pela primeira vez terá voz
ativa na política internacional”. Lá em Montevidéu, o historiador Fernando
Lopez D’Alessandro escutou a mesma pergunta e opinou: “A projeção do Brasil
pode ser bem-vinda, desde que não seja egoísta e arbitrária”. Ou seja, desde
que o Brasil não seja um caudilho. Ou um caubói.
Referência
Matéria retirada
integralmente da revista Superinteressante, edição 248 de janeiro de 2008.
Páginas:58 a 63. Texto de José Francisco Botelho.
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