Eae colegas professores, vocês são a favor ou contra os ciclos escolares? Eu tenho minha opinião e a de vocês? |
A organização da escola em Ciclos de
Formação é uma das mais avançadas formas de currículo, na medida em que a
própria estrutura da instituição volta-se para as necessidades educativas dos
alunos (e não ao contrário, como fazia a escola seriada), respeitando sobretudo
a questão básica dos tempos diversos para a aprendizagem e desenvolvimento,
pela superação das interrupções artificiais.
O que muda substancialmente na
avaliação por se tratar de Ciclo?
A rigor, a concepção de avaliação
formativa (diagnóstica, emancipatória, dialética, libertadora, dialógica)
permanece: o Ciclo radicaliza e coroa esta concepção (na medida em que a livra
da necessidade de ter de classificar e reprovar).
Em termos de avaliação, o fator
primordial interveniente na organização da escola em Ciclos de Formação é
justamente o fim da avaliação classificatória em termos de legislação. Esta
novidade é que constitui um avanço institucional. Mas é também um campo de
possíveis equívocos e discórdias, em decorrência de distorções historicamente
acumuladas.
Posicionamento do Professor
Precisamos
ter muita clareza: educação não se garante com tijolos, livros, leis. O fator
essencial da educação é o humano e, em especial, no caso da educação escolar, o
professor, por ser o coordenador deste processo em sala de aula. Portanto, não
podemos ter a ilusão de que uma “revolução” irá acontecer porque houve uma
alteração na legislação educacional (no caso, o fim da reprovação). O sucesso
ou fracasso de qualquer política educativa dependerá sempre do professor, do
seu grau de consciência, do seu compromisso, do seu envolvimento.
Neste
sentido, o fim da reprovação pode significar um avanço ou um retrocesso, de
acordo com a posição que o professor assume diante dele:
lAvanço: quando o professor entende
que com isto se acaba com um dos condicionantes da distorção da prática
pedagógica que é a avaliação classificatória;
lRetrocesso: se o professor se coloca
numa postura reativa, ressentida (“O nível do ensino vai cair”; “Agora perdemos
nosso poder”; “Os alunos não vão mais se interessar por saberem que estão
aprovados, etc.). Este efeito, a nosso ver, é muito mais grave que o possível
avanço apontado acima, pois significará que o professor estará fazendo algo que
não acredita, contaminando toda a prática educativa.
Por isto, o posicionamento do
professor é da maior importância. Um dos pontos de partida para a proposição do
Ciclo é justamente a constatação da não-aprendizagem efetiva e significativa
por parte da totalidade dos alunos que freqüentam a escola, sendo que a
avaliação classificatória, entre outras coisas, contribui para isto. Propõe-se,
então, o fim da classificação como uma forma de favorecer a aprendizagem de
todos. Ora, se passa a haver uma atitude de demissão por parte dos professores,
volta-se ao ponto de partida (não-aprendizagem). Na questão dos Ciclos hoje, o
que está em questão é tanto a mudança de procedimento pedagógico quanto de
atitude do professor; há necessidade destas duas dimensões caminharem juntas.
Por outro lado, o compromisso do
professor não se dá no vazio. Não podemos cair no viés idealista, voluntarista.
Objetivamente, a prática do professor, bem como seu nível de consciência
possível, dependerá, em alguma medida, de tijolos, livros, leis, salário, grau
de participação nas decisões, tempo livre para estudo e reflexão, etc. Devemos
manter a tensão dialética entre os limites colocados pela realidade e nossa
capacidade de tomada de consciência e de posição para enfrentá-los.
Há um desejo profundo, por parte de
muitos, de uma mudança da realidade. Sabemos também que transformar é complexo
e muito exigente. No entanto, cabe questionar: será que fazendo as mesmas
coisas teremos um mundo diferente? Provar que “um outro mundo é possível” exige
práticas concretas, inclusive na avaliação.
Superação ou Restauração?
Para os grupos que já têm uma
caminhada —como é o caso da rede municipal de ensino do município de São Paulo—
o desafio é fazer uma crítica “para frente”, no sentido de superar eventuais
limites e contradições, e não ceder à tentação de recuar, restaurar o que há
séculos se fazia na escola. Não temos dúvidas de que, num primeiro momento, a
prática tradicional de avaliação é muito mais fácil (os pais não questionam,
basta aplicar algumas provinhas e emitir um conceito, está de acordo com o
sistema seletivo social, etc.). Todavia, esta “saudade das cebolas do Egito”
tem um custo muito elevado: a contribuição para a manutenção da ordem dominante
desumana e excludente. Até mesmo do ponto de vista pedagógico, da
“sobrevivência” do professor em sala, a avaliação classificatória, em função
das profundas mudanças que ocorreram na relação escola-sociedade (em especial a
queda progressiva do mito da ascensão social através do diploma), já não dá
resultado. Uma evidência disto é a realidade de escolas (públicas ou
particulares) que mantém o sistema tradicional de avaliação e nem por isto
conseguem resolver os problemas de motivação e disciplina de seus alunos.
O Sentido Radical da Avaliação
O que está em questão? No fundo, o
resgate do papel essencial da escola: espaço de produção de aprendizagem e de
desenvolvimento humano de todos, e não de seleção social (ainda que de forma
involuntária).
A simples existência da avaliação
classificatória acaba por desviar a atenção do professor (e, por conseqüência,
dos alunos, pais e comunidade): passa a ficar preocupado em definir “o quanto o
aluno merece” e não mais em “o que é preciso para que o aluno aprenda mais e
melhor”. Vejam que isto é uma questão estrutural, que, inicialmente, não
depende da vontade individual do professor: quando entra na escola seriada, já
existe esta lógica implantada e é cobrado em cima disto.
A tarefa básica é simples (pelo menos
do ponto de vista de sua formulação): não interromper o movimento inerente á
avaliação no seu autêntico sentido, ou seja, não parar na verificação!
Aplicar um instrumento, corrigir e atribuir um conceito ainda não é avaliação!
Constatar a dificuldade do aluno é muito importante, mas não para poder lhe
atribuir “uma nota justa”, e sim para saber exatamente onde está o problema e
intervir a fim de resgatar a aprendizagem que ainda não se deu a
contento. Verificar, portanto, faz parte da avaliação, todavia não a esgota; no
seu sentido radical, a avaliação implica um posicionamento diante daquilo que
foi constatado. Esta interrupção na prática cotidiana é fatal para distorcer a
avaliação. Sabemos que existe uma série de fatores que contribuem para isto
(elevado número de alunos em sala, pressão para cumprir programas, falta de
domínio de estratégias diferentes de ensino, etc.); porém é absolutamente
decisivo que seja completado o ciclo da avaliação para que ela cumpra sua
função maior de produção de conhecimentos, procedimentos e atitudes, conforme o
Projeto Político-Pedagógico da instituição.
Os
procedimentos pertinentes a uma avaliação diagnóstica, nos parece, já são bem
conhecidos: adequar o nível de
exigência; ser professor dos alunos concretos que tem e não virar professor de
“determinados conteúdos preestabelecidos”; desenvolver metodologia de trabalho
interativa em sala de aula; incentivar que o aluno “diga com as suas palavras”
aquilo que está aprendendo; abordar conteúdo de forma diferente; buscar
expressão diversificada do conhecimento; fazer retomada dos assuntos (currículo
em espiral ascendente); dialogar sobre as dificuldades (postura de
investigação, pesquisa); ajudar aluno a se localizar no processo de
ensino-aprendizagem (metacognição); acompanhamento/atendimento durante
atividades em sala; atividades diversificadas de acordo com as necessidades dos
alunos; adequar o nível de dificuldade das atividades propostas em sala,
levando o aluno ao sucesso na sua realização e, conseqüentemente, fortalecendo
sua auto-estima; trabalhos de grupo em sala; trabalho de monitoria (em
sala ou fora); assembléias de classe
periódicas para análise da caminhada; espaços diferenciados (biblioteca de
classe, cantinho da leitura, cantinho dos jogos, estante do verde, caixa de experiências,
etc.); revisão da proposta de trabalho (conteúdos, metodologia, relação
professor-aluno); entendimento da avaliação como espaço de aprendizagem;
avaliação diferenciada, de acordo com as necessidades dos alunos (inclusive
alunos portadores de deficiência); desenvolver a responsabilidade coletiva pela
aprendizagem de todos em sala; favorecer o crescimento da autonomia do aluno;
conselhos de classe participativos; organização das turmas sem critérios
discriminatórios; professor-orientador para aluno com dificuldade maior na
aprendizagem ou no relacionamento; propiciar a formação permanente dos
educadores; avaliar o avaliador (a instituição, a equipe, o professor);
trabalho com representantes de classe; o mesmo professor acompanhar a
turma no ano seguinte (além de conhecer melhor os alunos, evita comentários dos
colegas do ano seguinte de que “os mandou sem base”); trabalho coletivo:
discutir com colegas dificuldades que está encontrando com alunos em sala de
aula; partilha de experiências, estudo; planejamento conjunto, “negociação” de
conteúdos; uso de portfólio
(pasta com todas as produções do aluno) como forma de melhor acompanhamento da
aprendizagem; uso de parecer descritivo
(ao invés de nota ou conceito) para poder se conhecer melhor o desenvolvimento
dos alunos; propiciar horário comum de estudo em sala (ex.: na primeira aula do
dia os alunos pesquisam os assuntos das próximas aulas); laboratório de
aprendizagem para trabalhar as necessidades específicas de aprendizagem;
abertura a estagiários de cursos de formação de professores para ajudar no
trabalho com alunos com dificuldade; fortalecimento da autonomia do professor.
Todavia,
como não há prática que se garanta por si (uma vez que se pode ter uma prática
nova com postura velha), cabe trazer alguns indicadores de mudança, qual seja,
alguns sinais que costumam se manifestar quanto de fato está havendo uma
mudança da prática educativa: maior proximidade professor-aluno, diminuição das
queixas em relação aos alunos (os problemas passam a ser tratados como desafios
e não como álibi para não ensinar), mudança nas estratégias de sala de aula,
replanejamento, aumento do registro por parte do professor (episódios de sala
de aula, dúvidas, pontos a serem observados, descobertas, etc.), maior
expressão dos alunos, mais liberdade em sala, menos medo de errar, ausência de
tensão nos momentos mais específicos de avaliação, menor competição entre
alunos, clima de maior verdade entre professor e alunos (diminuição dos
comportamentos estereotipados ou dissimulados), reflexão sobre a prática por parte
do professor, autolocalização do aluno no processo de aprendizagem, aumento da
pesquisa por parte do professor (e dos alunos), maior cooperação entre colegas,
maior tolerância com as diferenças, relação de maior proximidade com a
comunidade, clima de projeto na escola.
Concluindo
O que se
espera, portanto, é que os educadores sejam sujeitos de transformação, abrindo
novas possibilidades na forma de ser da escola. No fundo, o que está em questão
é uma mudança de atitude, que, apesar dos riscos de sermos mal interpretados,
pode ser expressa numa palavra: amor! Como dizia Renato Russo, na Música Monte
Castelo: “Ainda que eu falasse a língua dos homens/E falasse a língua dos
anjos,/Sem amor eu nada seria. É só o amor, é só o amor”.
Parafraseando,
eu diria:
Ainda que utilizasse muitos
instrumentos de avaliação, ainda que preparasse instrumentos reflexivos e
operatórios, ainda que acabasse com a semana de prova, ainda que não usasse
mais nota e nem tivesse mais reprovação, se não mudasse
a postura, se não acreditasse que um outro mundo —onde todos tenham lugar— é
possível, se não tivesse profundamente convencido de que todo ser humano é
capaz de aprender, se não me comprometesse com a efetiva aprendizagem (e
desenvolvimento) de todos, eu nada seria como educador!
*Publicado originalmente em Revista Prove. São Paulo: Projeto de Valorização do Educador e Melhoria da Qualidade do Ensino, n. 1, nov. 2002. (aqui modificado)
Referências
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VASCONCELLOS, Celso dos S. Superação da Lógica Classificatória e
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__________Avaliação da Aprendizagem: Práticas de Mudança - por uma práxis
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__________ Avaliação: Concepção Dialética-Libertadora do Processo de Avaliação
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__________Ciclos de Formação: uma
alternativa libertadora de organização escolar. In Revista de Educação.
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__________ Ciclos de Formação: um
horizonte libertador para a escola no 3o milênio. In Revista de Educação da AEC (111).
Brasília: AEC, 1999.
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