Como se deu a passagem o mito a razão como forma de se
entender o mundo? Foi um "milagre grego" ou uma transição apoiada no
próprio mito?
(Pag.79) Introdução.
Costuma-se dizer
que os primeiros filósofos foram gregos. Isto significa que embora reconheçamos
a importância de sábios como Confúcio, Lao Tsé e Zaratustra, essas doutrinas
ainda estavam vinculadas à religião...
Neste capítulo
veremos o processo pelo qual se dá a passagem da consciência mítica para a
consciência filosófica grega.
1. Homero
e Hesíodo.
Os mitos gregos
surgem quando ainda não havia escrita e, portanto, eram preservados pela
tradição e transmitidos oralmente, sem preocupação com a autoria.
(Pag.80) Homero (séc. IX ou VIII a.C.) foi o autor
de Ilíada e Odisseia. Alguns autores acreditam que essas obras foram elaboradas
por diversos autores. As ações heroicas relatadas nas epopeias mostram a
constante intervenção dos deuses.
No período da
civilização micênica, o indivíduo é presa do destino (Moira) que é fixo,
imutável, e não pode ser alterado. O herói vive, portanto, na dependência dos
deuses e do destino, faltando a ele a noção de vontade pessoal, de liberdade.
Mas isso não diminui a virtude do herói que se manifesta em sua coragem.
Hesíodo (VIII-VII
a.C) produz uma obra que tende superar a poesia impessoal e coletiva das
epopeias. Ele valoriza o trabalho e a justiça, destacando a importância das
regras que balizam o comportamento humano. Sua obra Teogonia (teo=Deus,
gonia=origem) reflete ainda o interesse pela crença nos mitos.
2. Uma
Nova ordem humana.
No período arcaico
(VIII-VI a.C) surgem os primeiros filósofos gregos. Alguns autores chamam de
“milagre grego” a passagem repentina da mentalidade mítica para o pensamento
crítico filosófico.
Outros estudiosos
realçam o fato de que essa passagem resultou de um processo lento, preparado
pelo passado mítico. Ou seja, a filosofia grega não é fruto de um “milagre”,
mas a culminação de um processo gestado através dos tempos.
(Pag.81) Algumas novidades do período arcaico
ajudaram a transformar a visão que o mito oferecia: a escrita, a moeda, o
nascimento da pólis e a ei escrita.
A escrita.
A consciência
mítica predomina em culturas de tradição oral (mythos significa palavra). A
palavra antes da escrita estava ligada a um suporte vivo que a pronunciava. É
bem verdade que, de início, a primeira escrita era mágica e reservada aos
privilegiados, aos sacerdotes e aos reis. Entretanto, num segundo momento, a
escrita assume função diferente, porque se desligou de preocupação esotéricas e
religiosas.
Os escritos deixam
de ser reservados apenas aos que detêm o poder e passam a ser divulgados em
praça pública, sujeitos a discussão e a crítica. Isso não significa que a
escrita tenha se tornado acessível a todos (a maioria da população era
analfabeta). O que está em destaque aqui é a dessacralização da escrita.
A moeda.
Entre os séculos
VIII e VI a.C dá se o desenvolvimento do comércio marítimo, decorrente da
expansão do mundo grego. O enriquecimento dos comerciantes provoca a
substituição de valores aristocráticos por valores da nova classe em ascensão.
Na época da aristocracia rural a economia é pré-monetária. Os objetos usados
para a troca vêm carregados de simbologia sagrada. A moeda, inventada na Lídia,
aparece na Grécia por volta do século VII a.C, o que facilita os negócios e
impulsiona o comércio.
Os produtos que
antes se restringiam ao seu valor de uso passam a ter valor de troca, isto é,
transformaram-se em mercadorias. Daí a exigência de algo que funcionasse como
valor equivalente universal das mercadorias. Muito mais do que um metal
precioso que se troca por qualquer mercadoria, a moeda é artificio racional,
convenção humana, noção abstrata de valor que estabelece a medida comum entre
valores diferentes.
A lei escrita e o
cidadão da pólis.
(Pag.82) Para Jean-Pierre Vernant, pensador
francês o nascimento da pólis (VIII-VII a.C) marca a verdadeira invenção, por
provocar grandes alterações na vida social e nas relações humanas.
A transformação da
pólis se deve aos legisladores Dracón, Solón e Clístenes, pois, a justiça, que
até então, dependia da interpretação da vontade divina ou da arbitrariedade dos
reis passa a ser codificada numa legislação escrita, comum a todos sujeita a discussão
e modificação.
Essas modificações
expressam o ideal igualitário que prepara a democracia nascente, já que se
abole a hierarquia fundada no poder aristocrático das famílias.
A originalidade da
cidade grega é a ágora (praça pública), espaço onde se debatem os problemas de
interesse comum. Separando-se o domínio público do privado. Sendo elaborado o
novo ideal de justiça, pelo qual todo cidadão tem direito de poder. A noção de
justiça assume caráter político e não apenas moral, ou seja, não diz respeito
apenas ao indivíduo, mas a sua atuação na comunidade.
A pólis se faz
pela autonomia da palavra, o saber deixa de ser sagrado e passa a ser objeto de
discussão. A expressão da individualidade por meio do debate faz nascer à
política, que liberta o indivíduo dos desígnios divinos.
(Pag.83) Por fim, é bom lembrar que quando falamos
em democracia grega ou ateniense, devemos ter em mente que a maioria da
população se achava excluída do processo político.
3. Os
primeiros filósofos.
Os primeiros filósofos
gregos viviam nas colônias gregas da Jônia e da Magna Grécia e recebem o nome
de pré-socráticos. Entre os mais importantes estão: Tales, Anaximandro,
Anaxímenes, Heráclito, Pitágoras, Xenofanes, Parmênides, Zenão, Leucipo,
Demócrito, Anaxágoras e Empédocles. Em geral escreviam em prosa, abandonando a
forma poética das epopeias.
Os primeiros
centram sua atenção na natureza elaborando diversas concepções de cosmologia,
procurando a racionalidade constitutiva do universo. Ao perguntarem como seria
possível o cosmo emergir do caos, eles chegaram ao princípio (a arché) de todas
as coisas, tentando explicar qual é o elemento constitutivo de todas as coisas.
As respostas as essas perguntas são as mais variadas.
4. Mito e
filosofia continuidade e ruptura.
(Pag.84) A diferença básica entre pensamento
mítico e a filosofia nascente: os filósofos divergem entre si e a filosofia se
distingue da tradição mítica oferecendo uma pluralidade de explicações
possíveis. Além disso, a física jônica é a expressão do pensamento racional e
abstrato, ao recorrer a argumentos e não a explicações sobrenaturais.
No entanto, para o
inglês Cornford, apesar das diferenças, o pensamento filosófico nascente ainda
apresenta vinculações com o mito. Examinando os textos filosóficos jônicos,
Cornford descobre neles a mesma estrutura de pensamento existente no relato
mítico.
Portanto, na
passagem do mito à razão, há continuidade no uso de certas estruturas de
explicação. Na concepção de Cornford não
existe “uma imaculada concepção da razão”, pois o aparecimento da filosofia é
um fato histórico enraizado no passado.
Conclusão.
Embora existam
aspectos de continuidade entre mito e filosofia, o pensamento filosófico é algo
muito diferente do mito. Enquanto o mito é uma narrativa cujo conteúdo não se
questiona, a filosofia problematiza, convida a discussão. No mito a
inteligibilidade é dada, na filosofia é procurada. A filosofia rejeita o
sobrenatural, a interferência do divino na explicação dos fenômenos.
Na nova abordagem
do real caracterizada pelo pensamento filosófico, podemos ainda notar a
vinculação entre filosofia e ciência, que só se separam no séc. XVII.
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