terça-feira, 6 de maio de 2014

Fichamento: Cap III: Problemas e promessas: economia informal, crime e corrupção, normas e direitos.

Onde estão os países mais violentos do mundos? Errou quem disse África ou Oriente médio. Os países mais violentos do mundo estão no continente americano e é este fenômeno que os dois autores do capítulo buscam compreender. 
Boa Leitura!
(157) 1. Introdução: uma cultura de transgressão.
A coesão social é impensável sem o respeito a um conjunto de regras e normas. Toda sociedade as possui e no fundo, apesar das transgressões, todas tendem a submeter-se a elas. Umas mais (quando o respeito às normas está na tradição e na religião) e outras menos (quando a secularização e a destradicionalização são mais intensas, e onde o acatamento das ordens de baseia em escolhas éticas pessoais e racionais).
Na América Latina a representação histórica que se possui sobre as normas é que elas possuem um caráter bifronte, ou seja, o seu uso difere em relação a pessoa com quem entra 
(158) Na América Latina existe uma cultura de transgressão particular. Essa cultura é uma mescla de atitudes arbitrárias e de “vista grossa”, de severidade no castigo para uns e da “lei do funil” para outros (o amplo para mim, o estreito para os outros). Em relação aos poderosos a tolerância pode ser imensa. Em muitos países, a “esperteza” não é só tolerada como é reconhecida como uma expressão do “gênio” nacional.
Em todo caso, a lei são se aplica de maneira igual a todos, e em particular para os poderosos a impunidade é quase uma certeza, pois há a possibilidade de empregar seu poder econômico para por os mecanismos legais a seu favor, ou de simplesmente corromper o funcionário público responsável pelo processo.
(159) A raiz dessa situação vem da herança colonial, e a distância estre o país legal e o país real, isto é, entre o que a lei manda e o que a realidade social permite. A longa tradição de desconexão entre a “lei” e o “hábito” é tal, que parece que a única finalidade da “lei” é favorecer a corrupção.
Contudo, existe uma moralidade nas sociedades latino-americanas, mas ela é elástica e ambivalente. Diz-se que quem cumpre as leis é um idiota, mas ao mesmo tempo ninguém duvida de que seja necessário dispor de regras. Muitas vezes uma transgressão pode ser objeto de elogio público e mais tarde ser desqualificada como uma “sem-vergonhice”. Ela é ao mesmo tempo rechaçada e admirada. Para alguns, a transgressão é em si mesma legítima, já que se vive em uma sociedade em que “ninguém respeita nada”.
(160) Os indivíduos, de todos os setores sociais, constroem suas estratégias de sobrevivência a partir das possibilidades determinadas pelas práticas estabelecidas com as instituições do Estado. Em uma dinâmica perversa, se a corrupção policial causa repulsa a todos, poucos, no entanto deixarão de usá-la se a questão for beneficiar ou proteger alguém querido que burlou a lei.
Se a transgressão é uma constante na história latino-americana, ao mesmo tempo ela foi permanentemente recomposta, tanto em seu sentido como em suas práticas.
Se o passado – fundado em relações de classe hierárquicas, autoritárias e do uso patrimonialista do Estado – é fundamental para entender como chegamos ao presente, ao mesmo tempo é insuficiente para explicar a atual relação entre as sociedades urbanas e a transgressão da lei. Trama esta, dos quais participam tanto ricos, quanto pobres.
(161) Como todo fenômeno histórico, as características e a vigência dessas práticas começaram a mudar e a tolerância a essas transgressões começou a diminuir. Pensemos na corrupção, se em outras épocas ela era considerada como regra na jogo político, agora ela é considerada cada vez mais um feito delituoso, o que levou a protestos e a uma desmoralização da democracia.
2. Violência Urbana Armada na América Latina.
(163) Segundo alguns estudos, a América Latina concentra cerca de 42% dos homicídios com arma de fogo do mundo.
O crescimento da violência.
Tomemos como exemplo El Salvador, Guatemala, Brasil e Venezuela, países que apesar das diferenças, apresentam sinais comuns nas questões que serão aqui analisadas.
Os conflitos armados que ocorreram na América Central acabaram na década de 1990, contudo a taxa de violência por agressão intencional continuou alta. 40 por 100 mil habitantes em El Salvador e 46 por 100 mil na Guatemala (2006).
A Venezuela e o Brasil, por outro lado, chegaram aos anos 1980 com perspectivas promissoras de desenvolvimento e democratização. No entanto, as taxas de homicídios dispararam na Venezuela de 9 por 100 mil em 1989 para 51 por 100 mil em 2003. No Brasil, a taxa de homicídios triplicou em duas décadas, passou de 7 mortes por arma de fogo a cada 100 mil habitantes, para 21 em 2002.
(164) Esse processo conheceu um deslocamento importante: a violência deixou o campo e transformou-se em um fenômeno fundamentalmente urbano.
(165) Para Briceño León, essa violência não é necessariamente fruto dos migrantes que deixaram o campo para se instalar na cidade, para ele, são os jovens da segunda ou da terceira geração que nasceram na cidade e que vivem agudos processos de frustração. Essa violência criminal é fruto de um choque entre o crescimento das expectativas e as insuficientes vias de realização formais. Esse fenômeno expressa também um processo de homogeneização de expectativas e da comunhão em um imaginário comum. Além de que, segundo o autor, antes essas expectativas eram canalizadas para a política e hoje são canalizadas para aspirações individuais.
(166) A dissonância entre expectativas e capacidade de realização se reflete em um mapa urbano marcado por desigualdades sociais. A pobreza, passa a significar uma vulnerabilidade crônica.
(167) “Vitimização” e grupos de risco.
(168) Mesmo nos bairros pobres, a vitimização não afeta a todos por igual. Em geral os mais afetados são homens jovens urbanos. Conhecem a cidade e não são analfabetos, mas tampouco formados para superar os obstáculos da integração na sociedade. Estão no meio do caminho entre o analfabetismo de seus pais e a educação qualificada exigida pelo mercado.
Não só a violência, mas também a sexualidade tendem a ser praticadas cedo nessa geração, e de modo livre, independentemente do controle dos adultos próximos. O que criou gerações de famílias chefiadas por mulheres nesses quatro países. No Brasil há uma relação direta entre famílias chefiadas por mulheres jovens e as taxas de violência letal por armas de fogo.
(169) A violência entre homens armados produz, um grande impacto direto nas família (em que os homens desempenham função determinante no sustento, e indireto na economia, onde somados e multiplicados, essa violência alcança a cifra de milhões de dólares.
(170) Em síntese, a violência que nos ocupamos aqui se caracteriza pelo uso intensivo de armas de fogo por parte de grupos criminais formados por homens de 15 a 29 anos, provenientes de setores de baixa renda. Nascem em famílias instáveis, fragilizadas pela ausência frequente do figura paterna. Não são analfabetos, mas tampouco são capacitados para progredir nas instituições da sociedade contemporânea. Com dificuldades de acesso ao mercado formal de trabalho, esses jovens exploram as oportunidades criadas pelo mercado ilícito, principalmente o tráfico de drogas. O fácil acesso ao mercado ilegal de armas fortalece seu domínio sobre determinados seguimentos territoriais ou econômicos. Esses grupos operam em toda a sociedade, mas assumem o domínio em áreas pobres de cidade grandes. Crescem se aproveitando da fragilidade endêmica das instituições e dos serviços públicos. Essa situação ocorre em cidades de países que não estão atualmente em guerra (Rio de Janeiro, Tegucigalpa, Caracas) ou em países com conflitos armados de caráter político, mas em áreas urbanas afastadas das zonas rurais de combate entre forças governamentais e grupos insurgentes (Cali e Medellín, na Colômbia).
A explosão das taxas de violência urbana armada transmite o sentimento de que o Estado é incapaz de assegurar a integridade física de seus cidadãos. O impacto sobre a coesão social é imediato e profundo. A insegurança e o medo dessensibiliza as classes médias e as afasta da situação em que se encontram os setores mais pobres, que passam a ser vistos com desconfiança, em particular se são homens jovens, e mais ainda se tem traços mestiços, índios ou negros. O que por sua vez reforça uma estratégia, especialmente entre os jovens dos setores populares, de utilizar a violência, ou a incivilidade como recurso para combater sua invisibilidade. É essa dinâmica perversa que se encontra na raiz desse “outro conflito” sem nome. Nesse sentido para é preciso destacar a lesão de conjunto que sua presença infringe na sociedade. A segurança sendo uma das liberdades de base da vida social que os Estados devem garantir a seus cidadãos – a todos os cidadãos – sua incapacidade nesse ponto conspira tanto contra a solidariedade entre os indivíduos quanto contra sua própria legitimidade.
(171) 3. Drogas, Crime Organizado e Estado.
Se a violência armada é o signo maior da impotência do Estado e da expansão de uma cultura da transgressão e do crime, não se trata, no entanto do único fenômeno que conspira contra a coesão social. A importância do tráfico de drogas é tanta que merece uma analise em separado.
Tráfico drogas e deslegitimação.
A relação da América Latina com os EUA, no que se refere ao tráfico de drogas não teve resultados muito positivos na região. O impacto do crescimento do tráfico de drogas na região significou em muitos países o fortalecimento dos grupos armados que passaram a controlar espaços urbanos e rurais, gerando um quadro desestabilizador que desafia a capacidade do Estado de assegurar sua função básica de monopolizar o uso dos instrumentos de violência.
(174) A questão das drogas, de seu tráfico e de seu consumo impacta de maneiras muito diversas as sociedades e o ambiente político nos países estudados. Em relação a isso, podem-se distinguir dois grupos: por um lado, o Brasil, a Colômbia e o México, países em que o narcotráfico tem impacto considerável – no primeiro, principalmente no ambiente social ao passo que nos outros dois, também na área política; enquanto nos outros quatro países estudados (Guatemala, Venezuela, Argentina e Chile) a questão das drogas não tem nem o mesmo impacto nem as mesmas consequências. Mas mesmo nesse ponto os países os países analisados divergem, enquanto na Colômbia o problema esta sendo solucionado, no México o problema alcançou outros níveis.
(175) O crime organizado e a perversão da coesão social.
A organização do crime alcançou níveis tais na região, que é preciso reconhecer o paradoxo e o enorme desafio que enfrentam as sociedades latino-americanas. Deve-se entender que a violência não é necessariamente o inverso da coesão social. Mas sim a condição de sua existência, embora não seja democrático.
Um exemplo empírico pode ajudar a visualizar essa questão: uma comunidade acossada pela violência pode se armar ou apoiar um grupo que se disponha a “fazer justiça com as próprias mãos”. A violência é a motivação para a organização da sociedade local. Estamos diante de um caso em que a coesão deriva da violência e se estrutura como violência.
(177) Crime organizado a patrimonialização do Estado.
O crime organizado e o tráfico de drogas implicam um risco de “repatrimonialização” perversa do Estado na América-Latina. Esse processo se apoia em uma herança baseada na convivência de uma precária convicção retrógrado e opressivo que reproduz e aprofunda desigualdades matriciais, obstruindo o desenvolvimento e a expansão da cidadania e da liberdade.
(178) O autor afirma que não quer dizer no trecho acima que o Estado na América Latina foi tomado pelo crime organizado ou pelo patrimonialismo, mas sim, que na medida em que muitas sociedades da região se tornaram mais complexas e as instituições democráticas se consolidaram, essas não conseguiram garantir o controle externo, ampla participação, transparência e redução da impunidade para criminosos do “colarinho branco”, o que fez com que o patrimonialismo tradicional, que politizava negativamente a economia e bloqueava o mercado, se metamorfoseasse, se enganchasse em dinâmicas criminais modernas e passasse a se manifestar sob a forma de crime organizado, do qual a corrupção pública representa um só exemplo possível.
Quando o patrimonialismo se degrada em crime organizado, a corrosão da legitimidade das instituições políticas pode conduzir ao ceticismo, à apatia, à autonomia crescente do corpo político, ao afastamento de segmentos burocrático-administrativos, isolando cada vez mais o Estado e a representação política daquilo que poderia ser chamado a base efetiva da vontade popular republicana.
(179) 4. As ameaças da corrupção.
Há a concepção de que na América Latina existe muita corrupção, o que afeta a vida política, econômica, as instituições e a coesão social dos países da região. Uma das características de um sistema social coeso é a legitimidade de suas instituições políticas , que se fundamenta no respeito aos que possuem uma autoridade delegada pela sociedade. É essa legitimidade que permite que as autoridades cumpram seus mandatos. Quando a legitimidade não existe, a autoridade é exercida pelo autoritarismo, pela violência, pela corrupção, etc.
Os regimes autoritários favorecem a corrupção pelas limitações que impõem a opinião publica, ao judiciário e pelo uso discricionário do poder. Os sistemas políticos corruptos sempre tendem ao autoritarismo, enquanto se apropriam dos recursos públicos.
(180) A corrupção é um fenômeno universal, a diferença está que na América Latina, se comparada aos EUA ou Europa, a corrupção apresenta elevados índices de impunidade. Essa impunidade, mais do que a corrupção em si mesma, é o que provoca a revolta e indignação dos cidadãos.
Corrupção econômica e desenvolvimento.
A corrupção afeta a coesão social de diferentes maneiras, mas seu principal efeito é a desmoralização das instituições democráticas e os sentimentos de identificação dos cidadãos com o sistema político. Tecnicamente a corrupção econômica impede a competição saudável dos preços e a qualidade dos produtos e serviços, limitando dessa maneira o crescimento da economia e a distribuição de seus benefícios para a sociedade.
A pergunta que fica é: a existência de práticas corruptas em determinado país facilita ou dificulta a atividade econômica, a criação de riqueza e o desenvolvimento econômico?
(181) Existe um forte consenso entre os economistas de que a corrupção tem um impacto negativo importante sobre a economia dos países afetados, pois, quando os governantes tomam decisões em função dos pagamentos privados que recebem, nem sempre as empresas mais eficientes e competentes aceitam investir no país. Além de que, se o suborno é prática normal, os impostos deixam de ser arrecadados e os serviços públicos beneficiam somente os que tem como pagar por fora, prejudicando investimentos públicos de interesse geral, como educação, saúde e infraestrutura.
(182) Corrupção politica e democracia.
A corrupção política ocorre quando “as regras do jogo” dos processos eleitorais e do funcionamento das instituições governamentais são violadas, seja nos processos eleitorais, seja nos processos legislativos, judiciais, seja na ação do executivo. Esse tipo de corrupção depende, em parte, da cultura ética de cada sociedade, da maneira que as instituições políticas estão conformadas e da transparência dos processos políticos e da ação governamental, assim como da força da opinião publica e da imprensa independente.
(183) A corrupção política, ainda que em alguns momentos possa facilitar a participação e o acesso de setores marginalizados ao poder, também contribui para a desmoralização das instituições.
Tão importante como a legalidade formal dos processos políticos e eleitorais são a legitimidade e o reconhecimento que o sistema político recebe da sociedade. A ausência de confiança dos cidadãos no sistema político gera diversas atitudes de crise. Em muitos países da América Latina, a deterioração da ordem democrática tradicional serviu de justificativa para o estabelecimento de regimes populistas.
(184) A desigualdade social e a insatisfação com os políticos profissionais alimentam o apoio a políticos que se apresentam como salvadores da pátria que vão governar para o bem do povo.
Corrupção, normas e coesão social.
Muitas análises costumam considerar a corrupção como um comportamento racional e desprovido de conteúdo moral.
(185) Sabemos que existem comunidades em que as pessoas agem de acordo com princípios éticos que não permitem a adoção de comportamentos corruptos e em outras sociedades isso não acontece. Diz-se na Argentina que existem as “regras míticas” (éticas) e os “códigos operacionais” (corruptos e que realmente funcionam).
O fato é que em sociedades organizadas para o bem comum e a obtenção de benéficos a longo prazo, os comportamentos éticos e a confiança nas pessoas são uma necessidade. Já nas sociedades voltadas para a busca de resultados imediatos e de curto prazo prevalecem os comportamentos predatórios.
(186) 5. A questão judicial.
(190) Apesar das reformas judiciarias dos anos 1990, as pesquisas de opinião continuam mostrando que a insatisfação da população com o desempenho do judiciário permanece alta. A opinião pública considera que o sistema não é justo, que se caracteriza pela existência de demoras custosas, por decisões politicamente motivadas e pela distância dos interesses dos cidadãos comuns. A justiça é percebida como pouco confiável, corrupta, lenta, custosa e trata de forma desigual ricos e pobres.
(194) Para a perspectiva administrativa, se o desempenho judicial melhora, as dificuldades de acesso serão reduzidas e consequentemente, alguns fatores que conspiram contra a coesão social tenderão a desaparecer.
Contudo, a desigualdade diante da justiça é uma das manifestações mais dramáticas e perigosas para a coesão social. Sua presença corrói não somente a legitimidade das instituições públicas, mas também afeta, muito mais profundamente inclusive, o sentido mesmo da vida comum. A percepção de um sistema judiciário injusto (e já não somente ineficaz) engendra sentimentos opostos que levam facilmente, ao niilismo político.
(195) Experiências desse tipo são ainda mais dramáticas quando acontecem em uma região marcada, por importantes problemas de violência, crime organizado e corrupção. O resultado, todos sabem, é uma mescla de sentimento de indignação, de cinismo e de apatia.

Referências:

SORJ, Bernardo & MARTUCELLI, Danilo: Problemas e promessas: economia informal, crime e corrupção. In O Desafio Latino-Americano: Coesão social e democracia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008, p. 157-197.

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