terça-feira, 2 de agosto de 2011

O que é o Estado e quais as diferenças entre Estado e Nação por João Ubaldo Ribeiro

A Rússia é um ótimo exemplo de como várias nações podem viver em um único Estado.
3.O Estado.
(P. 35) Todas as sociedades, mesmo as mais primitivas, são de alguma forma politicamente organizada. Ou seja, em toda sociedade há mecanismos estabelecidos, através dos quais as decisões públicas são formuladas e efetivadas. Toda coletividade tem alguma espécie de “governo”, embora a estrutura e o funcionamento desses governos variem muito. Uma coletividade sem organização política não seria humana.
Só a constatação de que há sempre um governo não basta para pensarmos adequadamente sobre a questão. (P. 36) Talvez o caminho mais fácil seja utilizarmos um pouco de imaginação histórica.
Suponhamos uma sociedade primitiva dos primórdios da História. Chamaremos essa sociedade de Ugh-Ugh [1]. Nos primeiros tempos de Ugh-Ugh, os homens não se distinguiam muito dos animais, pois sua tecnologia era precária. Contudo, a inteligência, a fala e o uso das mãos já distinguiam os Ugh-Ugh dos outros grupos. (...)
Podemos presumir que os primeiros líderes dos Ugh-Ugh eram os mais fortes, que podiam impor sua vontade sobre os mais fracos. Apesar disso, mesmo os mais fortes não podem enfrentar todos os outros membros em conjunto, o que aconteceu foi que os mais fortes trocavam seus privilégios por alguma serventia a comunidade: liderando o combate contra inimigos, tomando a frente das caçadas, etc.
(P. 37) Mas com o desenvolvimento tecnológico, ser apenas o mais forte já não bastava. Por exemplo, um ugh-ughiano de inteligência e habilidade inventou a primeira arma (uma lança ou um machado de pedra), é evidente que a força física já é contrabalanceada. A arma além de introduzir a noção espacial torna o braço mais longo, fato incompreensível para os animais selvagens e ameaçador para o próprio homem. O controle da tecnologia passou a desempenhar papel fundamental nas decisões coletivas. Quem tinha machado ou lança tinha o poder.
Outros avanços tecnológicos nas áreas de produção de alimentos e agasalhos também introduziram novidades em Ugh-Ugh. Se no começo eles dependiam da coleta das frutas selvagens ou da caça, agora eles aprenderam a agricultura e o pastoreio.
(P. 38) O início do cultivo intencional e organizado de plantas comestíveis e do pastoreio de animais são avanços importantíssimos. A coletividade se torna mais forte, mais apta a resistir a crises naturais, ao crescimento populacional, etc. O poder não vem só das armas e pode estar muito mais concentrado naqueles que detêm a tecnologia do cultivo e do pastoreio.
(P. 39) Com o tempo, os avanços tecnológicos vão gerar o que se costuma chamar de divisão social do trabalho. Enquanto no início os ugh-ughianos se limitavam a caçar e coletar provavelmente o trabalho era coletivo e a propriedade era de todos. Com o cultivo e o pastoreio a divisão iniciou-se, sendo acelerada pelo desenvolvimento tecnológico.
É necessário que se colha o trigo, que se selecione, que se faça farinha, que faça o pão. Todas essas atividades, gradualmente são distribuídas por diversos setores, bem como o pastoreio.
(P. 40) Esse processo de divisão social do trabalho introduz diversos conflitos de interesse na coletividade antes tão simples. Assim, para o agricultor o campo é lugar de semear; para o criador de gado, um lugar para transformar em pastagem. Quem conseguiu, pela força, um pedaço de terra poderá explorar o trabalho alheio de quem não conseguiu. Quem produzir trigo poderá trocar por carne e vice-versa e o valor relativo dos bens, agora transformados em mercadorias, será certamente arbitrado em processo que envolverá conflitos. Assim o interesse de cada um passa a não ser, como antes, o interesse de todos. Acrescente a isso a possibilidade de acumulação de excedentes, isto é, de bens em quantidade superior a indispensável para o consumo de seu produtor, o que irá marcar o perfil socioeconômico de Ugh-Ugh, tais como a acumulação individual de riqueza e o desenvolvimento do comércio.
(P. 41) Os conflitos de interesse causam tensão. A tensão só pode ser resolvida através da solução do conflito. Os conflitos de interesse só se resolvem no confronto e com a vitória do que dispõe de instrumentos mais eficazes.
Vamos imaginar que neste conflito os pastores e os agricultores entrassem em guerra civil que terminasse com a vitória dos pastores. Imediatamente, os pastores se organizariam para manter sua hegemonia e seus líderes seriam os líderes de toda a coletividade. Com o tempo, os costumes e os valores tenderiam a enobrecer atividades relacionadas com o pastoreio. Agricultores não poderiam tornarem-se nobres, sendo a eles proibido cavalgar por exemplo. A religião poderia se desenvolver em torno de mitos adequados a visão de mundo dos pastores.
(P. 42) Com a vitória, os pastores de Ugh-Ugh, resolveram o conflito básico de sua sociedade e, pelo menos por enquanto tem controle das decisões públicas. Com o passar do tempo, esta situação pode não permanecer. Então, a tendência do vitorioso é criar todo tipo de mecanismo para se estabilizar no poder. E desta maneira diferenciar os governantes dos governados por meio da institucionalização.
Não é complicado entender o que é institucionalização. Vamos supor que depois da vitória, um dos pastores se haja tornado chefe e, durante a sua vida, tenha gradualmente assumido uma série de responsabilidades e tarefas importantes para seu povo. Com a morte deste, ocorre a indicação de outro líder para assumir o legado político do falecido.
(P. 43) Ou seja, existe um papel social e político a ser cumprido independente da pessoa que o desempenha. A organização só se manterá se houver mais do que o chefe: se houver a chefia. No momento em que a chefia passa a existir ela se institucionaliza. Com a institucionalização surgem os processos de sucessão e inúmeras instituições paralelas ou corolárias.
A esse conjunto de instituições dá se o nome de Estado. Que nasce em dois passos: a) o estabelecimento da diferença entre governantes e governados; b) a institucionalização dessa diferença. Onde quer que existam essas condições existirá um Estado, quer ele tenha presidente, rei ou chefe, leis escritas ou não, três poderes ou não e assim por diante.
As instituições são compreendidas em um arcabouço chamado ordem jurídica, ou seja, um conjunto de normas de aplicabilidade geral, que regem o funcionamento da coletividade. Em Ugh-Ugh, mesmo muito tempo depois do estabelecimento de um Estado complexo, é bem possível que as normas jurídicas, o que hoje chamamos leis, fossem não escritas e misturadas com normas religiosas, morais e outras. (P. 44) Isto ainda existe hoje em dia, mas o comum é que a ordem jurídica seja mais ou menos distinta da religião e da moral.
Resumindo, com o surgimento de atividades e o fim da coletividade, houve diversos conflitos de interesses entre grupos. Esses conflitos são resolvidos com o domínio de um grupo sobre o outro estabelecendo a diferenciação entre governantes e governados. Essa diferenciação é institucionalizada criando-se a ordem jurídica. Assim forma-se o Estado. Que existe em toda sociedade política e juridicamente organizada, muitas vezes confundindo-se com a sociedade.
4.Estado e Nação.
(P. 49) A palavra “Estado” tem utilização confusa, especialmente para os brasileiros, por causa da forma do Estado brasileiro, que é a federação, dividida entre a União (governo federal) e os Estados. Então quando se fala em Estado o brasileiro pensa em São Paulo, Minas Gerais, Bahia, etc. O termo Estado usado neste sentido deveria ser mudado para “Estado- membro”, porque todos eles fazem parte do Estado brasileiro.
Na linguagem corrente, é comum que se usem como sinônimos as palavras “Estado”, “Nação”, “País” etc.
(P. 50) É preciso que esses termos sejam distintos, para que não caiamos numa confusão. Em muitas situações os termos são sinônimos em outras não. Sendo fundamental distinguir principalmente as palavras Estado e Nação.
Hoje a maioria dos países é classificado como um “Estado-Nacional”. Mas podemos dizer que talvez a maioria dos países são na verdade Estados não-nacionais. Pois, há Estados com várias nações e há nações com vários Estados. O Estado já sabemos o que é. A nação pode encaixar-se completa e exclusivamente dentro de um Estado, mas também pode não se encaixar.
A nação quer dizer muitas vezes uma raça comum, uma língua comum, uma história comum, tradições, valores e hábitos comuns. Que os identifique com um grupo.
Existem grupos que moram distantes e se sentem membros de uma nação como cearenses e gaúchos. (P. 51) E outros que vivem muito perto e não se sintam de uma mesma nação como os bascos e os castelhanos. Os bascos que vivem na fronteira entre Espanha e França não se sentem pertencentes a nenhum dos dois Estados.
Para os brasileiros isso é difícil de entender. Pois, o Brasil é um caso raríssimo onde Estado coincide com nação. Então para um brasileiro desavisado russo é russo, quando na verdade russo é apenas uma das várias nações que compõe a Rússia. Outro exemplo é o Canadá um Estado binacional.
Há também nações politicamente divididas como a Alemanha [2], dividida entre ocidental e oriental.
(P. 52) Muitas nações europeias só se constituíram em Estado recentemente, até bastante depois do Brasil. Como a Itália e a Alemanha.
Estados como a Iugoslávia e a Tchecoslováquia [3] são na verdade a junção de várias nações muito individualizadas, como sérvios, croatas, montenegrinos, tchecos, eslovacos, macedônios, eslovenos e assim por diante.
Os diversos grupos independentes de índios brasileiros, embora em número muito reduzido para classificar o Brasil como uma Estado multinacional, são nações submetidas ao poder centralizador do Estado brasileiro.
(P. 53) Nem a nação nem o Estado necessitam de um território fixo e delimitado. A nação cigana se espalhou por todo o mundo sem perder sua identidade. Da mesma forma indivíduos dispersos por muitos países podem considerem-se cidadãos de um mesmo Estado. Como aconteceu na II Guerra quando a resistência francesa se fez em outros países.
Essas coisas são muito importantes de se ter na mente quando tentamos compreender os problemas dos índios brasileiros, dos palestinos, dos bascos, etc. São também noções indispensáveis para se compreender a história dos povos, pois do contrário grande parte dela perderá o sentido.
Os palestinos são um exemplo de nação sem Estado.
Assim, por exemplo, a Guerra dos cem anos é tida sempre como uma guerra entre a Inglaterra e a França no séc. XIV. Mas como se nem a França, nem a Inglaterra existiam como as conhecemos hoje, ou seja, não existiam os Estados francês nem inglês. (P. 54) Não sendo assim uma guerra entre Estados, mas crises internas dentro da classe dominante da época, que vivia um momento de declínio do feudalismo e de início da afirmação do poder do rei (primórdios do surgimento do Estado nacional). Se ignorarmos estes fatos, nossa visão dos acontecimentos se perde em tolices.

[1] Esse é um exercício de “imaginação histórica” e não pode ser compreendido de maneira literal. Essa simplificação é um resumo de processos que se desenrolaram durante milênios.
[2] Não se esqueça de que o livro foi escrito em 1981.
[3] Estes dois Estados não existem mais justamente por isso.
Bibliografia:

RIBEIRO; João Ubaldo: “Política: quem manda, por que manda, como manda” - 1981.pág 35-54

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